CAZUZA E AS COBAIS DE DEUS

CAZUZA E AS COBAIAS DE DEUS

Nelson Marzullo Tangerini

Uma canção de Cazuza retrata bem o que estamos passando, quando o deus dos religiosos não se importa com nada, se omite e se diverte com o sofrimento dos mortais. “Cobaias de Deus” é um título de impacto, e sua letra é perfeita, magnífica:

“Se você quer saber como eu me sinto, / vá a um laboratório ou um labirinto. / Seja atropelado por esse trem da morte. // Vá ver as cobaias de Deus / andando na rua, pedindo perdão. / Vá a uma igreja qualquer, / pois lá se desfazem em sermão. / Me sinto uma cobaia, um rato enorme / nas mãos de deus mulher, / de um Deus de saia, // cagando e andando. / Vou ver o ET / ou ouvir um cantor de blues em outra encarnação. / Nós, as cobaias de deus, / nós somos as cobaias de deus. / Nós somos as cobaias de deus. // Me tire dessa jaula, não sou macaco / desse hospital maquiavélico. / Meu pai e minha mãe, eu estou com medo / porque eles vão deixar a sorte me levar. / Você vai me ajudar, traga a garrafa. / Estou desmilinguindo, cara de boi lavado. / Traga uma corda, irmão (irmão, acorda!). Nós...”.

Por momentos, passou por mim a imagem kafkaniana daquele homem, Gregor Samsa, que acorda transformado em uma barata desprezível. Mas talvez eu esteja apenas exagerando. Cazuza apenas se sentiu um rato num laboratório.

Muitas pessoas irão me criticar, censurar, me acusar heresia, ao lerem meu texto, mas esta é a triste realidade: seres humanos foram caçados na África, onde eram livres, e transformados em animais de carga qualquer. Foram vendidos como bois e terminaram barbaramente explorados, torturados e escravizados nas Américas pelos europeus.

O poeta Castro Alves, indignado com o sofrimento dos africanos escravizados, em sua poesia “Tragédia no mar” (livro “Navio Negreiro), lança aos céus uma pergunta:

“Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura... se é verdade / Tanto horror perante os céus...”

O poeta não obteve nenhuma resposta de deus e a escravização dos africanos seguiu seu rumo macabro.

Na Alemanha nazista, judeus foram, também, escravizados, torturados e eliminados - nos campos de concentração e extermínio.

Esse crime monstruoso aconteceu num país predominantemente protestante (hoje são chamados de “evangélicos”, como se os católicos também não o fossem), com o apoio da Santa Madre Igreja Católica, que recentemente, na figura do Papa João Paulo II, pediu perdão aos judeus.

O horror era tanto, que, em depoimento no livro “Os sete últimos meses de Anne Frank”, de Willy Lindwer, editora “Universo dos livros”, Lenie De Jog – Van Naarden, deixa transparecer claramente a sua descrença e sua decepção, no que refere a omissão de deus:

“Nunca entendi como um ser superior – se existe um ser superior – pôde deixar aquilo acontecer”.

E prossegue:

“Chamei Deus para questionar: ‘Deus, ó Senhor está deixando isso acontecer?’ Nunca recebi uma resposta e nada mudou”.

Muitas seres humanos perderam suas vidas nas mãos d carrasco Mengele, o “anjo da morte”, como era chamado, nas cercas eletrificadas, em trabalhos exaustivos ou doenças do campo, como o tifo, que matou Anne Frank e sua irmã Margot.

É muito natural, portanto, que Lenie ou qualquer outra pessoa questionasse a existência naquele momento.

Em Portugal, Espanha e Itália, o fascismo chegou ao poder com a ajuda de seus respectivos gados e a da Santa Madre Igreja Católica, que, em eras remotas, enviou seres humanos (judeus e cientistas) para verem de perto as fogueiras da Santa Inquisição. Em seu íntimo, Giordano Bruno, que propôs em seus trabalhos “A tradição hermética”, teria dito, antes de ser consumido pelo fogo: “Santa ignorância!”.

Em 2002, quando estive em Lisboa, meu amigo Manuel Vieira, levou-me à Praça do Rossio, palco das grandes fogueiras em Portugal.

Poderia citar outros momentos da história, como a escravização dos judeus no Egito (Êxodo) ou o Apartheid, na África do Sul. Ou ainda: a fome na Irlanda causada pelos ingleses invasores, a desumana exploração inglesa na Índia, o extermínio de cristãos e estupro de cristãs em Constantinopla (Istambul) e nos Bálcãs, durante a invasão turca e o extermínio dos índios, nas Américas, e dos aborígenes, na Austrália, dizimados impiedosamente por quem dizia trazer a Boa Nova e a civilização – como se os índios o aborígenes, que viviam numa outra civilização (diferente da dos europeus), não fossem civilizados.

O nome de deus esteve sempre à frente de todas as conquistas violentas e desumanas. Se deus existe, omisso, assistiu a todas essas explorações e assassinatos. Como agora assiste, em sua cadeira confortável, o extermínio de seres humanos pela aids ou pela covid 19.

Cazuza estava certo quando escreveu “Cobaias de Deus”. O nome é apropriado, após entendermos que a falta de sensibilidade e humanidade de deus se mantêm ausente naquele ser perfeito e omisso.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 25/03/2021
Código do texto: T7215830
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