a rica mulher pobre.
um pouco mais de uma hora de atraso. conversamos sobre tudo: eu, a mocinha que estudava em Paripiranga e que iria pra Caruaru ver os pais e o moço que trabalha na rodoviária validando os tickets. por volta da meia-noite quando sentei, ela já estava lá, na poltrona vinte e seis.
enquanto ela dormia, eu seguia firme e forte, como sempre em viagens de qualquer tipo. numa parada comentei da 'inveja' que tinha dela por dormir tão bem daquele jeito. 'você ta aí atochada no seu cantinho, né?'. de fato. tinha eu, minha camisa (a xadrez que eu vou desde a padaria até a faculdade), meu chapéu, bolsa, travesseiro etc etc.
começamos a conversar. eu não via o seu rosto direito, só o perfil esquerdo, um pouco escuro que às vezes clareava devido a alguma luz que entrava de fora do ônibus. ela ia pra Garanhuns ver as filhas. filhas estas que eu conheci quase que completamente: seus amores, desamores e todas as experiências que você puder imaginar. entre a divisa de Sergipe e o estado de Pernambuco, eu adentrei a vida dessa senhora. falamos sobre seu trabalho: cozinheira. cozinhava pra homens em obras e pulava de cidade em cidade. foi casada. num deles apanhava muito e num dia de habitual espancamento pegou o - insira aqui algum número de revolver - e quase o matou. não deu, ele conseguiu contê-la. 'ainda bem né?', eu disse. ela falou que alegaria legítima defesa. por pouco falei que a justiça brasileira não costuma gostar de negro e pobre e que essa alegação talvez não fosse aceita - já ouviu falar do Rafael Braga?. mas só concordei. verdade. era a sua verdade, era a verdade do mundo. legítima defesa. num outro, pegou o então marido com a amiga na cama.
conheci as mais duras experiências desta mulher. meus olhos grudavam, eu parecia um zumbi, mas não me permitia dormir diante de uma pessoa tão rica próxima a mim. ela não parava de falar. e eu, não parava de ouvir. ela não queria mais saber de relacionamento sério. 'eu também, só se valer MUITO a pena'. ênfase no muito. 'mas você é tão novinha'. tenho 30. O QUÊ? - sim, trinta. num momento, ela me mostrou seu whatsapp. a maioria das conversas eram em áudio. 'sou analfabeta' oi? 'sim, só sei escrever meu nome, mas olhe eu já aprendi o 'bom dia'. de fato em algumas mensagens tinha um 'oi' dela no meio dos vários áudios. achei fofo, achei confuso, achei sei lá o quê.
faltavam cerca de 100km pra Garanhuns, finalmente adormecemos. quando chegamos, ela levantou, pegou a mala e se despediu de mim. uma mulher de quarenta e poucos anos que poderia escrever sua biografia numa série de três volumes. ela ajudava a sustentar suas filhas. ela viajava direto pra lá e pra cá. ela me ensinou muito, essa mulher. e enquanto ela buscava a sua mala de mão por cima da minha cabeça, ao invés de levantar e abraçá-la, meu ímpeto foi de gratidão. não em voz alta. mas um imenso amor dentro de mim se expandiu por aquela mulher. negra, pobre, nordestina, guerreira.
ela desceu. a poltrona vinte e seis ficou vazia. e eu subi até o Rio Grande do Norte dormindo, acordando, sorrindo.
entre a minha poltrona e a dela.
um pouco mais de uma hora de atraso. conversamos sobre tudo: eu, a mocinha que estudava em Paripiranga e que iria pra Caruaru ver os pais e o moço que trabalha na rodoviária validando os tickets. por volta da meia-noite quando sentei, ela já estava lá, na poltrona vinte e seis.
enquanto ela dormia, eu seguia firme e forte, como sempre em viagens de qualquer tipo. numa parada comentei da 'inveja' que tinha dela por dormir tão bem daquele jeito. 'você ta aí atochada no seu cantinho, né?'. de fato. tinha eu, minha camisa (a xadrez que eu vou desde a padaria até a faculdade), meu chapéu, bolsa, travesseiro etc etc.
começamos a conversar. eu não via o seu rosto direito, só o perfil esquerdo, um pouco escuro que às vezes clareava devido a alguma luz que entrava de fora do ônibus. ela ia pra Garanhuns ver as filhas. filhas estas que eu conheci quase que completamente: seus amores, desamores e todas as experiências que você puder imaginar. entre a divisa de Sergipe e o estado de Pernambuco, eu adentrei a vida dessa senhora. falamos sobre seu trabalho: cozinheira. cozinhava pra homens em obras e pulava de cidade em cidade. foi casada. num deles apanhava muito e num dia de habitual espancamento pegou o - insira aqui algum número de revolver - e quase o matou. não deu, ele conseguiu contê-la. 'ainda bem né?', eu disse. ela falou que alegaria legítima defesa. por pouco falei que a justiça brasileira não costuma gostar de negro e pobre e que essa alegação talvez não fosse aceita - já ouviu falar do Rafael Braga?. mas só concordei. verdade. era a sua verdade, era a verdade do mundo. legítima defesa. num outro, pegou o então marido com a amiga na cama.
conheci as mais duras experiências desta mulher. meus olhos grudavam, eu parecia um zumbi, mas não me permitia dormir diante de uma pessoa tão rica próxima a mim. ela não parava de falar. e eu, não parava de ouvir. ela não queria mais saber de relacionamento sério. 'eu também, só se valer MUITO a pena'. ênfase no muito. 'mas você é tão novinha'. tenho 30. O QUÊ? - sim, trinta. num momento, ela me mostrou seu whatsapp. a maioria das conversas eram em áudio. 'sou analfabeta' oi? 'sim, só sei escrever meu nome, mas olhe eu já aprendi o 'bom dia'. de fato em algumas mensagens tinha um 'oi' dela no meio dos vários áudios. achei fofo, achei confuso, achei sei lá o quê.
faltavam cerca de 100km pra Garanhuns, finalmente adormecemos. quando chegamos, ela levantou, pegou a mala e se despediu de mim. uma mulher de quarenta e poucos anos que poderia escrever sua biografia numa série de três volumes. ela ajudava a sustentar suas filhas. ela viajava direto pra lá e pra cá. ela me ensinou muito, essa mulher. e enquanto ela buscava a sua mala de mão por cima da minha cabeça, ao invés de levantar e abraçá-la, meu ímpeto foi de gratidão. não em voz alta. mas um imenso amor dentro de mim se expandiu por aquela mulher. negra, pobre, nordestina, guerreira.
ela desceu. a poltrona vinte e seis ficou vazia. e eu subi até o Rio Grande do Norte dormindo, acordando, sorrindo.
entre a minha poltrona e a dela.