QUINTESSÊNCIA - ou, aquilo que há de mais puro.
Não sei, definitivamente não sei. Então penso numa ave. Qualquer ave. Das aquáticas às terrestres, que voam ou não voam, grandes e pequenas, as belas e as não tão belas. Eu penso numa ave. Mas o que torna a ave uma ave? Permitindo-me ser o mais simplório possível, diria que ave é tudo aquilo que voa. Porém há aves que não voam. Por isso, permito-me ser mais exigente; ave é tudo aquilo que tem asas, quer voe ou não voe. É isso. Ou não? Afinal insetos têm asas, voam, mas não são aves. Morcegos também não são aves (...). Então o que é uma ave? Não sei, mas posso afirmar que todas elas têm asas, pernas, penas e bicos. E isso basta. Ou deveria bastar, deveria ser tão fácil e prático quanto imaginar um peixe — eu acho.
Mas o que é um peixe? Novamente simplório, penso que peixe é todo animal aquático, vertebrado, fusiforme, que possui escamas e nadadeiras. Entretanto, as baleias são aquáticas, vertebradas, têm nadadeiras e não são peixes. Talvez não sejam peixes por falta de escamas. Mas o atum não possui escamas e é peixe. Tudo bem, ainda temos o fator espinha... que não existe nas Tilápias. E Tilápias são peixes. Restou o formato fusiforme, pois quando imaginamos um peixe, é esta imagem que vem a mente. Porém, os cavalos-marinhos não são fusos, e são peixes. Então o que é preciso para ser um peixe?
Seria eu um peixe? Só me falta aparecer um peixe que vive fora d'água, aí ferrou, quem garantirá que não sou peixe também? Não! Eu não sou um peixe, sou humano. Humano? Mas quem disse que sou humano? O que é ser um humano? O que há em mim que não se pode encontrar em nenhuma outra espécie da natureza? O que há em comum em todos os humanos, independentemente de suas possíveis diferenças? O medo? Não sei, as crianças não têm medo nem de cara feia. A coragem, então? Talvez, mas ela teria que guiar todos os nossos atos, coisa que nitidamente não acontece. Sentimentos e emoções? Também não serve, outros animais os têm. Consciência? Isso já foi provado não ser exclusividade humana. Bom, consigo pensar em apenas uma característica única do ser humano, algo encontrado em todos, desde o dia em que nasce até o dia em que morre: a busca. E chamemos esta busca do que bem entendermos; pela felicidade, satisfação, prazer, conforto etc. a verdade é que todas as ações humanas giram em torno de um desejo de ser feliz. Coisa decorrente de uma falta de algo, dum vazio. Animais não são assim, eles agem por instinto, possuem um objetivo pré definido — não vemos um leão lutar a vida inteira para ser rico e depois se frustrar por ser rico mas não ter amigos ou amor e consequentemente se matar por isso, o leão só quer comer, dormir e transar, é simples.
Estamos o tempo todo buscando ser feliz, e quando somos infelizes é porque estamos frustrados por não encontrarmos essa tal felicidade. Isso porque é tão fácil, incrivelmente fácil, ser alguém fracassado na vida, que de repente lá está você: sem casa, sem emprego, sem estudo, amor, sonhos, amizades, dinheiro, sim, claro, dinheiro, perspectivas e aquela coisa toda que costuma dar algum sentido a nossa existência.
E então ela pergunta: "você não acha que se cobra demais, se cobra por padrões da sociedade?". É que o ser humano será eternamente mais velho que qualquer sociedade, respondo-lhe, mas ela não entende — eles nunca entendem. E eu sei, é a época, é tudo culpa dessa desgraça de época onde estou inserido. Maldita época da mediocridade, onde colocaram na cabeça das pessoas que está bem não estar bem. Não posso me dar ao luxo de esquecer que estou aqui, numa época de intelectuais rasos, artistas sem talento, homens castrados, mulheres incrivelmente fúteis e adolescentes pervertidos. Nada se salva. Eu não me salvo. Especificamente falando, é possível você ser convencido de que o amor de sua vida deva ser uma mulher linda, magra (apesar de "linda" e "magra" serem quase sinônimos...), que cozinha bem, transa feito uma cachorra no cio e se veste como uma freira, por exemplo. Porém, não, de forma macro, não. Não é convencimento a ideia de que você, certamente, vai querer um amor. E é exatamente porque desejamos um amor que há, de tempos em tempos, diversas versões do amor ideal. A sociedade é apenas um reflexo de sua partícula primária; o indivíduo. Você não faz uma coisa porque as TVs, rádios e revistas dizem que você deve fazer tal coisa. TVs, rádios e revistas dizem que você vai fazer tal coisa porque outros bilhões também fizeram, bilhões de uma época anterior a TVs, rádios e revistas. Então, quando alguém me aparece com o papo de "padrões sociais", minha conclusão mental é quase que automática: estou conversando com um possível idiota.
Estamos a todo instante buscando algo. Tentando suplantar o vazio. E este vazio... colocando-o sob palavras, é basicamente você ir deitar pela noite e se perguntar "pra que que eu ainda estou aqui?". E então você relembra um pouco de sua vida e vê que a sua volta sempre houve umas pedras, umas árvores, uns carros, uns muros e coisas do tipo. E essas coisas sussurravam algo em seus ouvidos enquanto você passava, elas cantavam baixinho "seja feliz, seja feliz, seja feliz". E você não deu ouvidos. Estava se esforçando demais em não ser infeliz. E este vazio é como um buraco negro sugando tudo para dentro de você e a caminho do nada. Você quer comida, mas ela não é suficiente. Você quer amor, mas ele um dia esfria. Você quer amigos, mas um dia eles se tornam chatos. Você quer se sentir útil, mas não a ponto de fazer sempre a mesma coisa até virar rotina. Você quer, quer, quer. Mas nada lhe preenche.
Estamos buscando. Este é o fator que não nos permite ser um simples peixe, ou uma simples ave. É nossa dádiva, é nosso preço. Alimentar o grande monstro de nós mesmos, este monstro devorador de sonhos, sentidos e presenças. Se seria mais fácil ser um peixe, uma ave? Ah! Não sei, definitivamente não sei.