MEMENTO MORI -- CRÔNICA

"MEMENTO MORI", eram as palavras grafadas, em letra cursiva e caprichosa, no bilhetinho que Pe. Benedetto entregara ao rapaz quando este, com a consciência limpa, saía do confessionário. Um suposto vírus que, segundo os informes diários da tevê, se alastrava soberbamente pelo mundo, ceifando, em cotas diárias, milhares de vidas, obrigou as autoridades sanitárias a ordenar a suspensão de toda e qualquer atividade "não essencial"; o que incluía, obviamente, os cultos religiosos públicos. Por isso, o rapaz, que vivia no subúrbio da capital, se quisesse atender aos preceitos da sua religião, tinha que empreender uma viagem de cerca de duas horas até uma das únicas paróquias no centro velho da cidade que conseguiu, graças à perspicácia do seu vigário, burlar os "fiscais da prefeitura". Praticamente todas as outras igrejas que o rapaz conhecia estavam fechadas.

Depois de ler aqueles dizeres, ele dobrou cuidadosamente o bilhetinho do padre e o depositou no bolso da camisa. Desde que viera da Itália há três anos, Pe. Benedetto tornou-se logo o seu confessor, eles nutriam uma amizade sincera, com ele o jovem aprendia não só sobre a realidade da sua fé, mas sobre as questões urgentes da vida comum também. Antes de sair da igreja, porém, tratou logo de colocar a máscara; assim, o rapaz agora se via no meio da multidão que, em função do novo adereço com o qual todos cobriam metade do rosto, parecia mais uniforme, mais indolente, apática, inerte. Caminhou até alcançar uma padaria, não conseguia se habituar com o novo paradigma do atendimento: o café, o capuccino, o croissant, o pão de batata, a baguette, os quitutes de todas as gradações de sofisticação, tudo era servido no lado de fora da padaria, longe dos assentos convidativos que jaziam bloqueados por longas faixas amarelas. Era o isolamento.

De pé, defronte para a ampla janela da padaria que fora transformada em balcão, o rapaz fez o seu pedido a um dos três atendentes do pequeno comércio. Com um aceno de cabeça, chamou um dos moços que, prestativo, disse um "bom dia!" abafado pela máscara. Um café expresso com leite acompanhado de croissant quatro queijos fora servido sem celeridade. Além do rapaz, só um outro cliente estava presente. O jovem apanha o seu copo americano em 3/4 preenchido de café; espera, contudo, o croissant ser requentado no micro-ondas. Sorve um gole, solta um impropério inaudível, porque esquecera-se do açúcar, olha para o balcão, vê a caixinha e ignora a variedade de opções, escolhe, por intuição, o sachê mais simples: açúcar refinado. O micro-ondas apita. Chega o croissant. Na metade da refeição, o rapaz decide, como que para prolongar o sabor do queijo derretido, olhar em volta, para os transeuntes na avenida.

Subitamente, cospe a bebida da boca como quem estivesse na iminência de um ataque cardíaco: um atropelamento. Há gritos, correria, celulares, flashs, impropérios... O rapaz abandona o café sem fazer questão de guardar na memória o local onde o deixara, sai da padaria com a incerteza de estar sentindo as pernas e caminha em direção ao ajuntamento de curiosos em volta do corpo moribundo. O motorista do caminhão, que fugira, o jogou a poucos passos do balcão improvisado da padaria. O rapaz vê o corpo, as feridas, as fraturas, o sangue... Evita olhar para o rosto do infeliz que, contudo, ainda conservava sua máscara. De repente, entre a multidão, avista alguém conhecido, alguém querido, alguém amado: era o padre Benedetto. O rapaz se emociona, não faz questão que o padre seu confessor o veja, se encolhe, tenta se esconder na multidão. Mas ele quer ver o padre. O rapaz entende o que o sacerdote precisa fazer.

No seu tempo de seminarista, Pe. Benedetto teve como professor um celibatário que fugira do comunismo que imperava no leste da velha Europa. Nas muitas conversas que tivera com seu confessor, o rapaz, boquiaberto, ouvia as histórias de como o diretor de Pe. Benedetto, para fugir da fiscalização antirreligiosa do Partido vermelho, celebrava missas nos porões dos intrépidos fiéis. Pe. Benedetto tomou para si os ideais do seu velho professor. Vê-lo ali, a acudir o moribundo atropelado, a celebrar a extrema-unção o fez refletir sobre o senso de responsabilidade, de dever; a consciência da entrega integral, heroica, pelo outro. Entrementes a visão da morte do agonizante, o rapaz teve um estalo, uma espécie de epifania, de experiência mística que revelava as verdades, não daquele, mas deste mundo. Durante o transcurso da vida, o importante é o cuidado da alma, todo o resto é contingente, de importância secundária. As ideologias, a política, as disputas pelo poder; os monopólios capitalistas, as sanhas socialistas; a ciência e os seus recortes da realidade...

O rapaz lembrou-se também de ouvir Pe. Benedetto falar-lhe sobre um certo professor de filosofia que, dentre o seu vasto cabedal de conhecimentos, ensinava que um homem maduro é aquele em cuja alma todos os sentimentos e emoções — ternura, ódio, esperança, pressa, indiferença, todos eles — são balizados pela consciência da morte. Agora, as palavras grafadas naquele bilhetinho no bolso da sua camisa começavam a pulsar, no compasso do seu coração. O jovem saiu, tomou o rumo de volta para a padaria, encontrou o seu café sobre o balcão, onde jazia frio. Tirou a máscara. Suspirou, correu as mãos pelo rosto, ignorou a solicitude do atendente, sorveu a bebida fria e saiu. Acessou a estação do metrô. Ele descia pela escada rolante no exato momento em que as buzinas da ambulância ribombavam na esquina. Desapareceu no subsolo.

Vitor Marcolin
Enviado por Vitor Marcolin em 21/03/2021
Reeditado em 21/03/2021
Código do texto: T7212377
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