Meia hora de conversa sincera
Tenho alguns amigos católicos, dois declaradamente ateus, um parcialmente paulista e os demais penso que alcoólatras. Amo todos esses meus amigos, independentemente da crença, da não crença ou do alcoolismo. Juntando todos eles, não chegam a vinte, um bom número diante do aumento do dólar e das garras da inflação. Recentemente esse número aumentou, graças a um favor que fiz a um, até então, desconhecido. Passava, a pé e sem pressa, pelas bandas da Panificação Wanessa II, de onde um senhor em trajes pouco tradicionais acabara de sair, com muitas sacolas às mãos e a porta do carro para abrir. O desconhecido me parou e perguntou, educadamente, se eu poderia lhe fazer o favor de destravar a porta do veículo. “É pra já!”, lhe respondi. Então ele me pediu que pegasse as chaves do carro, que estavam no bolso de sua calça, mais ou menos, (é que a indumentária mais parecia uma batina), e como ele estava com as mãos ocupadas... Então lhe fiz o obséquio. Ele me disse, “Muito obrigado”; eu lhe respondi: “Não há por onde!”; ele não entendeu. Tentei me explicar, a confusão semântica se generalizou, e ficamos quase vinte minutos tentando nos entender.
Ao fim do diálogo, conseguimos. E descobri que o desconhecido não tinha pressa de se evadir do local: é budista, solteiro, mora na capital, nunca casou, não tem tatuagem e, o que me surpreende, jamais foi revistado pela polícia. O antes desconhecido me revelou o nome, que mantenho em sigilo, não por ser segredo de Estado, mas por conveniência social. Disse-me que gosta de sossego, conversar pouco e que intentava passar umas férias longe da cidade e, para tanto, resolvera abastecer o veículo com suprimentos alimentícios, para folgar uns dias longe do asfalto, despreocupado com questão alimentícia. Ia para o campo, visitar uns familiares e exilar-se do mundo, como se fosse possível, claro.
De minha parte, revelei-lhe o básico: que não sou palmarino, que me desagrada o Capital e também a Capital, em parte; que, igualmente a ele, não tenho parceria amorosa nem pretendo, por enquanto não sei até quando; que, igualmente a ele, estou ileso de tatuagem, e não sei se isso é motivo de júbilo; mas que diferentemente dele: não sou budista e desconheço quem sou; que, principalmente, ao contrário dele, já fui várias vezes revistado pela polícia. No entanto, nas vezes em que me ocorreram essas abordagens, fui bem tratado e nada de desabonador me foi imputado. De modo que sobrevivi a todas essas visitas mais ou menos pouco constrangido.
Sereno e tranquilo, meu amigo budista ouviu meu relato, com aquela paciência bovina tão comum aos budistas. Não me impressionei com a serenidade de meu amigo budista diante do meu caso nem da sua vocação para ouvinte. Comoveu-me foi sua intenção de afastar-se do mundo de concreto armado, indo refugiar-se no campo, próximo a familiares. Essa ideia me parece pueril e meio maluca, tendo em vista as condições atuais da vida rural e o estado emocional, financeiro e político da maioria das famílias brasileiras.
De minha parte, se eu quisesse deixar o mundo, largar a cidade, possivelmente, não iria ao campo, levando alimentos industrializados nem me aproximaria de familiares, que geralmente são quase todos meio estranhos para mim e eu para eles. Melhor seria ausência mútua: eu de cá, eles, de lá. Um lá muito longe de cá.
Não sei se, dado o contexto caótico do mundo de hoje, é possível a algum ser, ou melhor, a algum pagador de impostos, livrar-se do caos nosso de cada dia. Talvez, se existisse esse lugar miraculoso, fosse muito distante da Terra. Talvez na Lua. Mas a Lua fica muito longe e, até o momento, não conta com rota de transporte legalizada. De qualquer modo, admiro essa pretensão evasiva que alimenta a vida de meu amigo budista, e me impressiona como meia hora de conversa sincera é suficiente para revelar toda uma vida pregressa.