MEU PAI E O DINHEIRO DA FEIRA

Na minha adolescência, anos atrás sem computador, internet, celular nem cd ou dvd, tínhamos um viver pacato, se bem que humilde por conta de nossa singela condição financeira, e a vida se resumia às, à época, chamadas paqueras inocentes, ninguém "ficava" ou saía beijando os lábios de várias pessoas como se faz hoje, vulgarizando as relações sentimentais, que foram transformadas em banalidades fúteis. Nosso lazer se resumia nas idas ao cinema, aos encontros dos amigos nas praças públicas e nas festas ocasionais de fim de semana patrocinadas pelos dois únicos clubes sociais da cidade, ambos sob rígido controle de figuras gradas da sociedade local.

Malgrado minha condição de simplicidade, eu sentia necessidade de interagir nessas festinhas quase familiares, de participar dessas atividades sociais com o fito de me divertir de forma sadia dançando todo feliz quando as mocinhas aceitavam meus convites para dançar.

Nem sempre, porém, eu tinha alguns trocados tanto para pagar o acesso ao clube quanto para comer um sanduíche ou tomar um refrigerante. Geralmente, quando o evento era gratuito ou, em sendo restrito aos sócios, algum amigo filho de sócio do clube facilitava minha entrada, lá estava eu buscando minha fatia de alegria nalguma festinha.

Certa vez, ansioso para ir à um desses encontros festivos de sábado à noite, pedi dinheiro a meu pai para gastos frugais, para o básico na lanchonete do clube. Ele, do alto de sua humildade, magnânimo e cheio de amor e compreensão, me disse, retirando do bolso um pequeno valor: "leve meu filho, esse é o dinheiro da feira de amanhã. Se precisar gaste." Meio sem graça, peguei o dinheiro, coloquei em meu bolso e fui para a festa. Enquanto a diversão durou, senti fome, cansaço e sede, mas, sabendo que aquele dinheiro em meu bolso representava o almoço de meus pais e meus quatro irmãos, tudo suportei até voltar para casa. Meu pai me esperava na sala, sentado em sua cadeira preferida, como sempre fazia às minhas saídas noturnas. Abriu a porta, eu entrei, tirei o dinheiro do bolso e devolvi, dizendo: "Papai, aqui está o dinheiro da feira que o senhor me deu, não gastei nenhum tostão. Ele me abraçou e senti as lágrimas dele molhando meu rosto. Ele sacrificaria o almoço da família para me ver feliz, mas eu sacrifiquei a fome, a sede e o cansaço por estar ciente daquele gesto amoroso que somente os pais são capazes de fazer é o que significava de carência para todos. Entao, ainda que minhas entranhas gritassem de revolta, eu jamais gastaria um centavo do pouco dinheiro da feira de nossa família.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 18/03/2021
Reeditado em 18/03/2021
Código do texto: T7209846
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