Copenhague Zero Grau - Vida do meu apartamento
O apartamento de minha irmã é um zoológico. O cachorro preto grande, o coelho-da-Índia, o casal de periquitos, aquele gato persa de olhos cruéis, acusadores, a cobra do Ceilão. O apartamento cheira a mijo, a mofo, a sujo, fico imaginando pulgas e piolhos, fico me coçando só de pensar. Sei que é cuidadosa com os bichinhos, mas... O apartamento tem um quarto de dormir, a sala, a cozinha, a privada. Privada, sim. Banheiro? Nem banheiro nem ducha, ela se lava até hoje na pia da cozinha, não posso é dizer como se vira. Nunca vi.
Tudo velho, apertado, mesquinho, fala sempre em economia, tem sempre o mínimo, mas vivendo, talvez, até melhor do que eu. Tem uma cara alegre, não se prega tanto em frente da televisão como eu faço, quase sempre não vendo nada, só matando o tempo. Ela não fica ansiosa aguardando a hora de descer com o cachorro pra mijada da noite, o que é, para mim, às vezes, a maior excitação de um dia inteiro de cochilos e sonolências.
Verdade. Às vezes, não consigo me concentrar na televisão só esperando a hora do bichinho começar a se agitar, ficar nervoso, com a bexiga cheia, resmungão, impaciente, reclamando o seu passeio noturno. De manhã, nem tanto, mas à noite... De vez em quando, me surpreendo quase a falar com ele, quase a perguntar se ele não quer descer, já tá na hora, vamos passear? É que as longas noites solitárias se cortam ao meio só com a descida à rua, ali pelas onze horas, quando a televisão – todas estações estatais - já estão por encerrar a programação, já não resta nada a fazer. Na verdade, sou eu que sou impaciente, porque o perro tem suas horas certas, é perro de caprichos, é um relógio e não se atrasa nem adianta. O impaciente e caráter fraco, volúvel, sou eu. Ele nunca deixa a televisão antes do prefixo de encerramento.
A rua de apartamentos, edifícios cinzentos, cheira a gasolina. Bendigo o cheiro, o barulho, a sujeira. Parece até alegria. O ar frio, a neve amontoada à beira das calçadas, esperando o degelo final, endurecida, gelo puro, enlameada, porcaria. Há muitos anos isso aqui não era assim. Havia menos gente bêbada no bairro, menos trânsito, mais prostitutas alegres e irreverentes, mais barulho, mais contentamento. A rua era diferente, mas eu também era diferente, a vida era diferente.
Birgit já não vivia comigo, mas escrevia às vezes da Espanha, lá do sol, o segundo casamento não a afastou de todo da minha vida. Afinal, sobraram os filhos. Os meninos passavam às vezes, com um chocolate, uma cerveja, um vasinho de flores pra minha janela, o que contrabalançava um pouco aquela solidão cinzenta de recém-divorciado. Saíram de cena aos poucos, levados para outros palcos mais interessantes.
Ele escreve da Índia, gerente de uma das nossas multinacionais, ela dos Estados Unidos, estudante de não sei que ramo de Psicologia. A vida era mesmo diferente, foi um parque de diversões, foi um carrossel, foi quase uma algazarra latina, mas foi mudando devagarinho pra não me assustar, acabou nisso aqui. Sobrou-me o apartamento de quarto e sala, a aposentadoria sem preocupações, a caixa do correio cheia, sempre, mas é de propaganda, que leio, satisfeito na falta de mensagens outras. Sobrou-me a visita quinzenal ao zoológico de minha irmã, o compromisso único de minha agenda.
De todos os seres humanos que dançavam comigo aquela valsa sem intervalos, sobrou este cachorro carinhoso que aprendeu a falar comigo, cuida lá de casa, relógio lá de casa, calefação lá de casa, vida lá do apartamento. Sobrou também esta coleira pra botar-lhe no pescoço (que alegrinho ele fica, mira, mira) ao descer a rua para proporcionar-lhe a mijada noturna, o corte único nesse filme monótono que é a vida deste velho aposentado de um estado do bem-estar.