Copenhague Zero Grau - Força, razão de Primavera

Foram cinco meses frios, sombrios, de horas de sol contadas nos dedos. Foram cinco meses de recolhimento e egoísmo geral. De repente - e isso já faz uns cinco dias - revelou-se uma irmandade inesperada. E que o sol e a lua deram de sair, cada qual a a seu turno, a neblina se dissipou, a neve começou a derreter-se, os aviões foram vistos no céu e as estrelas surgiram de novo- poesia pros nossos olhos desabituados. Ai, começamos juntos a detectar a primavera.

Há uma precisão geral de Primavera e cada qual tem sua razão particular para aguardá-la. O bêbado descobriu que o seu salário-desemprego já não dá mais pra tanta cerveja e "snaps". Os moços de moto e camisas de couro, bandoleiros urbanos, notaram que tem havido menos tolerância e mais repressão nas ultimas batidas policiais. A aposentada e seu cachorro tiveram menos calefação neste inverno, por ter de economizar combustível. O dono daquele carrão ali na esquina que teve de passear menos, pelas mesmas razões. As mães de família, que controlam carrinhos de bebês e empurram o orçamento doméstico, todos anseiam por ela, cada qual de maneira diferente e por razões diferentes, mas todos anseiam.

E daí essa irmandade inesperada, que usa os cinco sentidos, se cumprimenta nas ruas, nos trens, nos ônibus, e que saiu a detectar a primavera. Até os animais, que também sofrem e dividem humanamente os apartamentos dessa gente, até eles estão excitados. Os cachorros de todas as raças e luxos, os gatos de fita no pescoço, os coelhinhos-da-India, os coelhinhos sem pátria, os periquitos, papagaios, as cobras de estimação.

A folia geral também me domina. Numa sexta-feira ensolarada, arranco Turquim da cama à força e intimo-o a me acompanhar. Apesar do sol lá fora, faz frio de zero grau, o que não impede que ele se deixe convencer a levantar-se, lavar o rosto e sair, sob a promessa de que as coisas estão mudando e já há segredos a perscrutar e novidades a conferir. Fico satisfeito em dobro: por sair pra essa farra matinal, que parece excursão de grupo escolar, e ir com ele, que desde que a namorada sumiu com um grego, não de Troia, mas de Rodes, tem estado dormindo mais que o preciso. Tento instilar nele também uma razão de primavera.

Três horas de parques, bosques, praças e vitrinas, fazem dele um cara novo. Ele reconhece que lhe fez bem. Me alegro outra vez.

Custo a esperar que o inverno se vá. Amei pouco e fui ainda menos amado nas últimas neves. Não ganhei na loteria nem nas corridas de cavalos. A saúde andou bem, mas não faltaram resfriados fortes e fracos pra arreliar com a gente. Donde também tenho boníssimas razões pra ansiar por esta que se pressente e ainda não se vê e que, por isso mesmo, estamos imaginando. Aqui e agora, ela não é metáfora nem licença poética. Existe, se impõe, é quase carne e osso. Confunde-se com a esperança briguenta no peito da gente, essa gaiola de passarinhos.

Ali umas florezinhas amarelas aparecendo do chão do canteiro pelado! Ali uns brotinhos verdes nos nós dos galhos secos. Olha a grama saindo! Olha os passarinhos de novo, de volta! Olha os anúncios de tulipas: Leve uma tulipa pra sua, namorada! Olha a moda nos jornais! Olha aqui, olha ali, ela está chegando, chegando! Ela está chegando. É a vida de novo, a alegria, a renovaçao, o ciclo da Natureza, a força da Terra.

O inverno foi brabo e bruto, mas ainda e possível reflorir. Meses debaixo do gelo, mas o verde não morreu. Só tenho a aprender e revigorar-me com isso, eu, que até pensava que não mais poderia empurrar a tampa da minha sepultura, tapada há glaciares, crio coragem até pra cantarolar essa musiquinha alegre e a fazer planos pros dias de rosas, que, sem dúvida, já não tardam, não demoram, evêm aí.

(fevereiro/80)

William Santiago
Enviado por William Santiago em 15/03/2021
Reeditado em 17/03/2021
Código do texto: T7207833
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