Copenhague Zero Grau - Nada igual a cemitério em dia de neve
Nada igual a cemitério em dia de neve. As cruzes, modestas, de cimento grosso, ou ricas, de mármore trabalhado, são pombas de asas brancas se arrepiando para voar. As sepulturas são camas brancas de noivado, roupas de primeira comunhão; caixõezinhos de inocentes são bolos de aniversário, cabeleiras de velhos asseados.
Nada igual a cemitério em dia de neve. Ali, atrás do muro, estão os soviéticos. Do lado de lá, os americanos, cada qual resguardado pelos pesados edifícios de suas embaixadas. Os mortos não se apoquentam nem se impressionam nem se metem na vida alheia. Os vivos que por aqui passam, de volta a casa ou para o trabalho, também se tranquilizam. A certeza-de que nenhuma dor será eterna. Tudo transitório. Aporrinhações diversas como lentes de contato, reumatismos, cabelos rareando. Ou dores profundas. Amores desfeitos, acidentes de automóvel com parentes queridos, um câncer na família... Tudo terá fim na brancura da neve, um dia.
Nada igual a cemitério em dia de neve. As árvores peladas, o céu baixo, trabalhadores limpando as passagens entre as sepulturas, conversando sobre o imposto de renda, pensando em greve ou no "snaps" que vão tomar mais tarde, depois da faina. Um pássaro preto, de bico longo, gorducho e triste, praticamente imóvel, observa algo que deve estar a distância. Ou pensa, simplesmente. No que pensam os pássaros pretos, de bicos longos, gorduchos e tristes, num dia assim de neve?
Nada igual a cemitério em dia de neve. Os bancos estão quase enterrados e não é preciso limpá-los. Também, só no verão e que serão usados, quando os velhos vierem a tomar sol e os moços a namorar. Porque isto aqui será um parque, basta chegar o verão. Parque alegre como jardim-de-infância. Onde todos se encontram. Mortos e vivos. Cada um cuidando da própria vida, sem se intrometer nem na morte nem na vida alheia, como sói acontecer nesta branca terra do Norte.
(Copenhague, 26/01/79)