Café com modernismo
Acordo e saio à procura de minha escova de dentes, meus óculos e um copo de café amargo. Trôpego, primeiro vou à cozinha, mas antes esbarro numa mesa que não sei de onde surgiu, e chego à conclusão de que meus óculos devem ser tratados como prioridade. Mas onde os pus pela última vez, ontem, antes da insônia? Esqueci completamente. Pergunto à mãe se sabe onde fica o esconderijo de meus óculos, e mãe me responde que não sabe. Vejo que o caso é grave; penso que já está na hora de sinalizar meus óculos com GPS ou algo do tipo, para evitar esses sumiços. Depois de uns dez minutos de procura, encontro meu GPS visual sobre o sofá da sala, ao lado da escova de dentes. “Poxa, isso é que é sorte!”, comemoro. Visto os óculos, pego a escova de dentes, vou ao banheiro, banho os dentes, lavo a cara; em seguida vou pedir à mãe um copo de café amargo, para espantar a insônia. “O café tá no fogo.”, ela responde.
Vejo que mãe parece ter tido insônia também.
“O café tá no fogo.”, mãe respondeu. Uma resposta breve essa, mas muito sintomática dos dias de hoje. Antes do modernismo, na época em que nossa vida se restringia basicamente à casa e à cozinha, nosso café não costumava ser servido após as oito horas da manhã. Agora, com o modernismo, há muitas outras prioridades antes do desjejum. Antes do café, é preciso forrar a cama, fazer a caminhada matinal, alimentar os animais de estimação, ler o horóscopo, checar os e-mails, dar “Bom dia!” ao grupo do Zap, recolher o lixo. Tudo isso tem contribuído para aumentar nossas insônias e suprimir o café “da manhã”.
Outro dia encontrei um amigo tomando café da manhã às 13h30. Eu lhe perguntei o motivo da novidade, ele me disse não ser novidade alguma. Para ele, já era costume tomar o café da manhã à hora do almoço. Essa ocasião me fez pensar que, em breve, nosso café da manhã será extinto, em nome do progresso e da pressa da modernidade. Uma tragédia. Vejo o caso de uma amiga minha, moça jovem e moderna, e me assusto com a velocidade das coisas. Ela viu uma propaganda na tevê de um comercial de alimentos e trocou o café da manhã de todos os dias por três capsulas de vitaminas, que, segundo ela e a propaganda, são mais nutritivas que muitos cafés da manhã.
Vejo essa modernidade e me assusto. Toda essa pressa e “comodidade’’ que a vida moderna nos vende, em vez de diminuir minha insônia, tem contribuído para aumentá-la. É terrível. No tempo em que não havia em casa televisão em cores, água encanada, máquina de lavar, energia elétrica, condicionador de ar, empregada doméstica e outras modernidades, como geladeira Brastemp e ferro elétrico, nosso desjejum era próximo ao dos animais ruminantes. Lembro-me, inclusive, da época em que tomava café com as vacas, antes mesmo de o sol apontar sobre o telhado de casa. Tomávamos leite in natura, o único que conhecíamos, e muito saboroso. Depois vieram os supermercados e, com eles, o leite integral, o leite desnatado. E nosso leite nunca mais teve o mesmo sabor.
De óculos na vista, cara e dentes lavados, saio à calçada de casa, desmascarado. São quase dez horas da manhã, e ainda não tomei café. Hoje, com o modernismo, isso é normal, inclusive. De modo que faço parte do time do povo moderno, ainda que atue na defesa, na contenção de danos. Três moças e um rapaz passam, mascarados, e me encaram por alguns segundos. Parecem bem alimentados e inquisitivos. As moças seguem, o rapaz para, mantem-se a mais ou menos três metros de mim e me pergunta se leite faz bem pra o sangue. Eu lhe respondo que essa é uma pergunta muito interessante para os tempos atuais e que, antes do modernismo, poderia ser até respondível. Mas hoje, com o modernismo...