Breve saída

Vou à cidade para cuidar da saúde. Certamente, não iria, não fosse por essa razão imperiosa, pois ainda quero, por algum tempo, dedilhar por aqui uma ou outra experiência e dividir com os amigos, pelos dias que virão, a irrepetível experiência da vida. Ainda que, depois de ir pra sempre, eu volte a esta existência, não serei o mesmo e já me encho de saudade.

Enquanto espero o doutor, vejo que a moça bonita está ansiosa e murmura certa preocupação com a secretária. Não será nada de grave, penso eu, e faço silenciosa súplica. Ninguém deveria sofrer, mas somos realmente essas cobaias de Deus. Vou embora levando a receita e a cura do mal menor. Assim também, rogo de novo, há de ser para a moça bela.

A rua me espera. Uma rua quase deserta. Cidade grande e vazia. Dos prédios habitacionais, já não se ouvem buzinas, freadas, gritos frenéticos de camelôs... Nada, nada... A cidade é só silêncio. Pensei em visitar o Anselmo. Mas... seria possível? Certamente o prédio teria restrições, e o porteiro estaria encarregado de observá-las. Melhor deixá-lo quieto, naquele trigésimo andar, horror de acrófobos, como eu. Hoje ele não assistiria mais a batalha da toalha, da linda toalha de mesa. Certa feita, anos atrás, a doméstica (ele a chama de secretária) deixou no varal da varanda a peça de renda. Vento forte rompeu o pregador relaxado, e a toalha voou, voou e foi ser disputada por vendedores de rua, até que um pulou mais alto e a pegou, que nem buquê de noiva. Uma festa! De longe e do alto, Anselmo viu a viagem e a conquista. Ah, diria o Édipo de Sófocles, quão incerto é o dia da amanhã. Hoje, a linda e valiosa toalha seria enfeite no asfalto.

O vazio físico da cidade é triste. Cidade grande não combina com silêncio e solidão. Me senti como, em algumas vezes, nos tempos em que encerrava as aulas, lá no final das noites escolares. Sem pressa, apagava o quadro, ajeitava a caixa de giz e a pasta com os livros assessores, que me ajudavam na faina de transmitir e instigar e, descendo as escadas vazias de gente, a sensação que tinha era de uma certa plenitude interior na nudez do exterior. Quero dizer que é um momento ímpar de reflexão da nossa pequenez física e da nossa grandeza espiritual – o que será sucedido pela vida e seu corre-corre. Novos dias viriam e novas descidas de escadas estariam despidas dessa chama invasiva da reflexão sobre o existir.

Reflexão que fiz nos pequenos minutos da caminhada até o velho automóvel. Nada, nada que não me fizesse voltar às questões mais materiais do cotidiano. O shopping estava fechado – uma ou outra loja acesa, certamente, contabilizava prejuízos. As lojas da cidade exibiam recados comunicando o atendimento virtual. Pouquíssima gente... Uma tristeza! Cidade foi feita pra gente, movimento, barulho, atropelos. É a civilização com o seu mal necessário e irreversível. No quase sem gente, Baudelaire, se visse a moça passante, certamente poderia pretextar um motivo para galanteá-la, e, quem sabe, amá-la e depois contar de um amor que ficou.

A pedinte me pede uma moeda, é atendida e sai dizendo juras de amor. Tão pouco lhe dá a vida. A humanidade talvez só lhe importe por causa da redução ainda maior da pobre féria do dia. E a esmoler me faz pensar em quantos passarão a esse triste status nos próximos dias, meses, anos...

E vou caminhando, e vou pensando. Seguramente, essas catástrofes humanas não combinam com bolsas de valor, mercado, milionários, luxo, gritantes diferenças sociais, sede de lucros, cada vez mais lucros. Será preciso reinventar a vida...

Chego ao automóvel e (que surpresa!) a pintura nova está totalmente arranhada. Olho aos quatro cantos e não vejo ninguém. A cidade está vazia.