Águas de março

Sexta passada choveu, mas não foi uma chuva qualquer, foi aquilo que Tom e Elis, há 47 anos, chamaram de “Águas de março”, apesar da beleza da canção, as águas de março são, na maioria das vezes, um convite ao desastre. A chuva de sexta foi uma tempestade de março: raios, trovões e uma quantidade absurda de raios. Enquanto eu e Lia, minha cachorra, nos trancávamos dentro de casa, eu pensava no evento da minha vida que se igualava àquela tempestade: o dia em que eu decidi contar à minha família que era gay.

É pau, é a pedra, é o fim do caminho

É um resto de toco, é um pouco sozinho

É um caco de vidro, é a vida, é o sol

É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol

Era a sensação constante de solidão, de fim do mundo, do caminho, apesar de não ser esse o intuito de Tom ao desenhar esse verso, eu me sentia um caco de vidro, paninho da cachorra. Jovem demais, imaturo demais e incoerente demais, e apenas não esperava nada além de caos e destruição. Pobre infortúnio da vida, que assim como a chuva forte de sexta, desejava ver a minha morte. Era o que Tom dizia “o queira ou não queira”, eu quis contar, não havia como fugir da verdade, a minha sobre o mundo e a do mundo sobre mim. A primeira "contemplada" foi minha mãe.

É o fundo do poço, é o fim do caminho

No rosto um desgosto, é um pouco sozinho

Tom, novamente, não errou, foi um desgosto. Dentro de casa, por um minuto, achei que a chuva estivesse passando, quando abri a janela da porta, o mundo estava um caos, a chuva era forte, eu não consegui ver muito, os raios e trovões me assustavam muito e estar segurando uma janela de alumínio, fixa a uma porta de alumínio, definitivamente, não me parecia ser uma boa opção. Na outra história que conto, não sei se foi um desgosto para a minha mãe, mas certamente, foi um fim de caminho. “Mas e meus netos?” “O mundo é tão mau, eu tenho medo!”, “Você é tão jovem, tão bonito… é uma pena…”, não foi um diálogo fácil e eu não tinha qualquer pretensão que fosse. Nas duas histórias que conto, a chuva maior estava em mim e era do estrago dela que eu precisava fugir, me colocando num estado de fim de linha, um caminho que percorri de maneira muito solitária, até hoje, não sei se porque não havia ninguém ou se porque eu não quis que houvesse alguém. Talvez um pouco dos dois.

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando

É a luz da manhã, é o tijolo chegando

É a lenha, é o dia, é o fim da picada

Nos dois eventos, sem ter muito o que fazer, eu decidi arrumar a “casa”, bom… vocês entenderam o porquê das aspas. Esse foi o gesto que eu precisava, foi arrumando as coisas que eu enxerguei a necessidade de sair de casa, o lixo recolhido precisa ser posto o mais longe possível de casa, seja ela qual for. Foi preciso certa coragem para sair no meio da tempestade, nas duas. Mas, eu precisava. Coragem.. Respire fundo. E vá. E fui. No começo, os trovões assustaram bastante, os raios já não eram mais visíveis, somente os trovões. Por precaução, pus sobre mim uma simples toalha de banho, para tentar minimizar os danos da chuva sobre mim. Sai correndo, quanto mais rápido, menos chuva eu pegaria. Foram precisos 3 segundos fora da varanda, da proteção das telhas, para notar algo diferente, havia gotas, mas não havia tempestade, havia chuva e vento, mas não era o fim do mundo. Quando olhei para cima, o céu já não estava mais escuro, os raios de sol das 17h, voltavam a despontar no céu. Não era azul, mas não era preto.

Contar à minha família não foi fácil, mas foi possível. O medo do julgamento foi, pouco a pouco, dando lugar para abraços apertados e carinhosos, o medo da minha mãe foi se transformando em segurança, não no mundo, mas no filho forte que ela havia criado para um mundo que é duro. Nem tudo foi fácil, houveram trovões mais fortes, mas tudo bem, eram apenas barulhos, não haviam mais raios, eles não poderiam mais me atingir. Havia luz, havia lenha para queimar e me aquecer, havia uma casa e havia tijolos chegando, não era o fim da estrada, ainda haviam coisas a serem construídas.

Meus amigos, sinceramente, sem comentários, eu já falei deles aqui, eles foram tudo.

É um belo horizonte, é uma febre terçã

São as águas de março fechando o verão

É a promessa de vida no teu coração

No caminho de volta para casa, não voltei correndo, o lixo estava no local correto e a chuva não demoraria a passar. Ela já não era mais forte, na verdade, acho que ela nunca foi forte, eu apenas não sabia disso. Na verdade, eu não entendi que estava em casa e, que em casa, estou seguro, não importa o que ocorra.

Em poucos minutos a chuva de março se encerrou, a do verão, a da música e a minha. Passada ela, decidi sair de casa, ir no quintal, eu precisava não sei exatamente por qual motivo, mas ver o céu era uma necessidade. Quando enfim saí e olhei para cima, lá estava o meu sinal: um belo arco-íris enfeitando o céu, embalado sob os raios de sol que lutavam para brilhar novamente, já em despedida. Aquele era o meu sinal, aquela era a promessa de vida para o meu coração. Tudo estava bem.

Foi uma chuva.

Que bom.

Pedro H Ribeiro
Enviado por Pedro H Ribeiro em 12/03/2021
Código do texto: T7204732
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