TEM GATO NA TUBA
Sem saber a razão e o nem porquê, de uma hora para outra, ele decidiu: vou cantar tango! Quem sabe fora o physique du rôle que o fez encasquetar com a ideia. Talvez estivesse impressionado com um vídeo, no Youtube, mostrando Carlos Gardel ou nas audições da Rádio Belgrano, via Transglobe da Philco, com a voz de Roberto Goyeneche, estrela do cast da rádio portenha.
Fosse qual fosse o motivo não pensava em desistir do propósito de ser um cantante de tango no melhor estilo argentino. E queria ser com pose de milongueiro. Afinal, não lhe bastava apenas cantar tango. Queria a música que mostrasse a força de seu ícone musical...
Buenos Aires cantava no teu canto
Buenos Aires chorava no teu pranto
E vibrava em tua voz Carlos Gardel
Sonhou a noite toda com seu novo projeto de vida. A aposentadoria recém-conquistada, se não lhe permitia imaginar-se cantando no Teatro Colón, daria, pelo menos, poder passar pela centenária Casa Edith, na Generoso Marques, e comprar um Ramenzoni de gabarito e uma echarpe de seda. Uma quebrada na aba do chapéu e a vistosa echarpe completariam o figurino.
Se cantava as tragédias das perdidas
Compreendendo suas vidas
Perdoava seu papel
Por isso enquanto houver um tango triste
Um otário um cabaré uma guitarra
Tu viverás também
Carlos Gadel
Maria Luísa, que notara o sono agitado de Edson, estranhou a disposição do marido em levantar-se cedo. Logo ele que se gabava de não precisar mais pular nas primeiras horas da manhã. – O bom da aposentadoria é não ter hora para o batente. Mas nesse dia quase que acordou o galo com seu despertar: já entrou no banheiro assobiando o Mano a Mano.
Tomou café meio correndo e foi para o computador. Abriu o Google e digitou: Como Aprender a Cantar Tango. Foi dado o primeiro passo e surgiu o caminho das pedras: Tutorial para cantantes y aficionados.
O teu canto era a batuta de um maestro
Que fazia pulsar os corações
Na amargura das tuas melodias
Carlos Gardel
Na abertura do curso viu que estava fácil. Bastava seguir duas regrinhas: controle e coordenação e persistência e paciência. Viu que ia tirar de letra. Animou-se e foi à luta. Já começou a treinar a respiração, aquela história de diafragma e que tais. Dali foi para o estudo da pontuação. Obedecer vírgula, ponto, ponto e vírgula. Sem isso como vai saber respirar? Jamé!
Disciplinado, como poucos, Edson não se intimidou. Nem mesmo quando viu uma das lições: escolher e cantar um tango por 100 vezes! Aí o caldo entornou na paciência de Maria Luísa. Não aguentava mais vê-lo pela casa na sua incansável interpretação, seguindo as entonações de Nelson Gonçaves...
Um cabaré que fecha suas portas
Uma rua de amor e de pecado
Um guarda que vigia numa esquina
Um casal que anda a procura de um hotel
Um resto de melodia um assobio
Uma saudade mortal
Carlos Gardel
E lá pela trigésima repetição do Carlos Gardel, a paciência da patroa deu seu ar da graça: chega! O que suas filhas vão pensar do pai que vive por cantos e recantos falando de amor e pecado, casais fugindo de guardas pelas esquinas e entrando em motéis fuleiros? Na linguagem popular, desandou a maionese.
A explicação de Edson só serviu para subir a temperatura. Principalmente quando ele deixou escapar o número mágico: 100 vezes, querida! Ah, se pelo menos tivesse escolhido aquele tango do Perfume de Mulher...
Por una cabeza, de un noble potrillo
Que justo en la raya, afloja al llegar
Y que al regresar, parece decir
No olvides, hermano
Vos sabes, no hay que jugar
Patati patatá... Isso não pode continuar... quero que você me entenda... etecetera e tal.... Terminou com a bandeira branca sendo hasteada na cozinha, em razão da folha corrida de Edson que o apontava como pai extremoso e marido amantíssimo. Mas não sem antes a enérgica observação de Maria Luísa: CEM! E nada de CENTO E UMA!!!
Dito e feito. Edson se encolheu e aumentou seu tempo de banho. Debaixo d’água abria o peito e dá-lhe Carlos Gardel.
Mas a preocupação do candidato a cantante era a aproximação do Natal. Prometera a si mesmo que cantaria seu tango na ceia natalina. Guardou segredo de seu projeto e ficou feliz quando soube que naquela noite não haveria Roberto Carlos na Globo: - um a menos para não me atrapalhar!
Resumindo a ópera: apesar de todo o esmero de Maria Luísa e suas irmãs no preparo da ceia, o sucesso da noite foi mesmo o Edson. Contou com o apoio da patroa, que ressaltou a qualidade do marido exemplar, destacando, sobretudo, sua pertinácia, sem recuar diante dos obstáculos. Depois de muitos issos e aquilos veio a tradicional batida com a faca no copo, para exigir silêncio, e o brado retumbante:
-Com vocês, Edson, cantando o tango Carlos Gardel.
Ao final, palmas e elogios desmedidos. Foi o gran finale de sua maratona musical.
Tempos depois encontrei o Edson numa das minhas caminhadas. E daí? Como está a vida? Tudo bem? E a Maria Luísa?
Meio sem jeito, disse-me: nos separamos. Numa tarde ela me pegou assoprando num canudo. Entendeu a razão de ter visto no meu computador tantas pesquisas sobre Tuba.
08/3/2021
Sem saber a razão e o nem porquê, de uma hora para outra, ele decidiu: vou cantar tango! Quem sabe fora o physique du rôle que o fez encasquetar com a ideia. Talvez estivesse impressionado com um vídeo, no Youtube, mostrando Carlos Gardel ou nas audições da Rádio Belgrano, via Transglobe da Philco, com a voz de Roberto Goyeneche, estrela do cast da rádio portenha.
Fosse qual fosse o motivo não pensava em desistir do propósito de ser um cantante de tango no melhor estilo argentino. E queria ser com pose de milongueiro. Afinal, não lhe bastava apenas cantar tango. Queria a música que mostrasse a força de seu ícone musical...
Buenos Aires cantava no teu canto
Buenos Aires chorava no teu pranto
E vibrava em tua voz Carlos Gardel
Sonhou a noite toda com seu novo projeto de vida. A aposentadoria recém-conquistada, se não lhe permitia imaginar-se cantando no Teatro Colón, daria, pelo menos, poder passar pela centenária Casa Edith, na Generoso Marques, e comprar um Ramenzoni de gabarito e uma echarpe de seda. Uma quebrada na aba do chapéu e a vistosa echarpe completariam o figurino.
Se cantava as tragédias das perdidas
Compreendendo suas vidas
Perdoava seu papel
Por isso enquanto houver um tango triste
Um otário um cabaré uma guitarra
Tu viverás também
Carlos Gadel
Maria Luísa, que notara o sono agitado de Edson, estranhou a disposição do marido em levantar-se cedo. Logo ele que se gabava de não precisar mais pular nas primeiras horas da manhã. – O bom da aposentadoria é não ter hora para o batente. Mas nesse dia quase que acordou o galo com seu despertar: já entrou no banheiro assobiando o Mano a Mano.
Tomou café meio correndo e foi para o computador. Abriu o Google e digitou: Como Aprender a Cantar Tango. Foi dado o primeiro passo e surgiu o caminho das pedras: Tutorial para cantantes y aficionados.
O teu canto era a batuta de um maestro
Que fazia pulsar os corações
Na amargura das tuas melodias
Carlos Gardel
Na abertura do curso viu que estava fácil. Bastava seguir duas regrinhas: controle e coordenação e persistência e paciência. Viu que ia tirar de letra. Animou-se e foi à luta. Já começou a treinar a respiração, aquela história de diafragma e que tais. Dali foi para o estudo da pontuação. Obedecer vírgula, ponto, ponto e vírgula. Sem isso como vai saber respirar? Jamé!
Disciplinado, como poucos, Edson não se intimidou. Nem mesmo quando viu uma das lições: escolher e cantar um tango por 100 vezes! Aí o caldo entornou na paciência de Maria Luísa. Não aguentava mais vê-lo pela casa na sua incansável interpretação, seguindo as entonações de Nelson Gonçaves...
Um cabaré que fecha suas portas
Uma rua de amor e de pecado
Um guarda que vigia numa esquina
Um casal que anda a procura de um hotel
Um resto de melodia um assobio
Uma saudade mortal
Carlos Gardel
E lá pela trigésima repetição do Carlos Gardel, a paciência da patroa deu seu ar da graça: chega! O que suas filhas vão pensar do pai que vive por cantos e recantos falando de amor e pecado, casais fugindo de guardas pelas esquinas e entrando em motéis fuleiros? Na linguagem popular, desandou a maionese.
A explicação de Edson só serviu para subir a temperatura. Principalmente quando ele deixou escapar o número mágico: 100 vezes, querida! Ah, se pelo menos tivesse escolhido aquele tango do Perfume de Mulher...
Por una cabeza, de un noble potrillo
Que justo en la raya, afloja al llegar
Y que al regresar, parece decir
No olvides, hermano
Vos sabes, no hay que jugar
Patati patatá... Isso não pode continuar... quero que você me entenda... etecetera e tal.... Terminou com a bandeira branca sendo hasteada na cozinha, em razão da folha corrida de Edson que o apontava como pai extremoso e marido amantíssimo. Mas não sem antes a enérgica observação de Maria Luísa: CEM! E nada de CENTO E UMA!!!
Dito e feito. Edson se encolheu e aumentou seu tempo de banho. Debaixo d’água abria o peito e dá-lhe Carlos Gardel.
Mas a preocupação do candidato a cantante era a aproximação do Natal. Prometera a si mesmo que cantaria seu tango na ceia natalina. Guardou segredo de seu projeto e ficou feliz quando soube que naquela noite não haveria Roberto Carlos na Globo: - um a menos para não me atrapalhar!
Resumindo a ópera: apesar de todo o esmero de Maria Luísa e suas irmãs no preparo da ceia, o sucesso da noite foi mesmo o Edson. Contou com o apoio da patroa, que ressaltou a qualidade do marido exemplar, destacando, sobretudo, sua pertinácia, sem recuar diante dos obstáculos. Depois de muitos issos e aquilos veio a tradicional batida com a faca no copo, para exigir silêncio, e o brado retumbante:
-Com vocês, Edson, cantando o tango Carlos Gardel.
Ao final, palmas e elogios desmedidos. Foi o gran finale de sua maratona musical.
Tempos depois encontrei o Edson numa das minhas caminhadas. E daí? Como está a vida? Tudo bem? E a Maria Luísa?
Meio sem jeito, disse-me: nos separamos. Numa tarde ela me pegou assoprando num canudo. Entendeu a razão de ter visto no meu computador tantas pesquisas sobre Tuba.
08/3/2021