Mulherzinha de merda

Ela era só mais uma mulherzinha de merda que acordava cedo todos os dias, que preparava o lanche das crianças, passava as fardas e quando dava, ainda se maquiava. Era só mais uma mulherzinha de merda que pedia a Deus que protegesse seus filhos, que lhes cobrava dedicação aos estudos e se culpava pelas dificuldades que eles sentiam. Mulherzinha de merda que ralava no emprego, engolia sapos o dia inteiro e abdicava do almoço para ter alguns minutos com a prole. A merdinha que largava perto das seis, fazia a janta e ensinava o ABC. O banho era última ação, antes tinha a roupa para estender, a máquina para encher e a ligação para retornar. Havia também a casa para varrer, os móveis para limpar, o banheiro para lavar. Checar a dispensa, passear no supermercado, prender o cabelo embaraçado. Cinéfila de carteirinha, saía para os parques e brincava de amarelinha. Uma mulherzinha qualquer que planejava, executava e, quando dava, se alegrava. Mulherzinha de merda, apaixonada pela vida, fã de chocolate quente, sapatos novos e a massagem que o vento fazia em sua na face enquanto corria. Uma merdinha qualquer que lia e por vezes também escrevia. Sonhava os contos de fadas, vestia-se de fantasias. Era bailarina, astronauta e para rimar, dona de alfaiataria. Gostava do rosa ao dourado, passando pelo azul-turquesa e o céu de lua cheia e todo estrelado. Suas longas madeixas, seu batom vermelho, suas antigas bonecas, seu escarpam preto, as feridas nas mãos, as marcas no peito, o grito preso, sua angústia e desespero. Queria fugir, mas isso significaria levar tudo consigo, melhor ficar, erguer a cabeça e sorrir. Afinal, puta merda, que mulher ela era.