Alquimia de Domingo
Acordo ainda sonolenta com o som dos pássaros no quintal. A dor de cabeça que deitou comigo ainda está ali, chatinha incômoda. Levanto, lavo o rosto, um mini ritual de skin care: esfoliar a pele oleosa que pesa o olhar, escovar os dentes. Prendo o cabelo num coque e lavo o óculos, com o mesmo cuidado que acabara de lavar os olhos .Depois deles já não enxergo mais.
Na cozinha passo um café, e o cheiro me transporta à casa de meus avós. O avô a torrar café num caco sobre a fogueira e depois a socar no pilão, que em nada parece com este café moído, embalado à vácuo, que do modo antigo só permanece o cheiro. Sirvo uma torrada e fatias de queijo de manteiga, pedaços que trazem alegria e espantam a dor de cabeça, mesmo sabendo que mais tarde doerá a barriga, pois além da visão afetada, os 40 anos também trouxe intolerância à lactose, mas ainda assim vale o prazer de comer o queijinho fresco de manteiga com café quente. É como se voltasse à infância, o avô no quintal torrando o café, a avó no fogão à lenha mexendo nata de leite guardada por dias, num caldeirão fervendo, mexida com a colher de pau, sem parar, raspando bem o fundo da panela, para não grudar. A nata ia transformando-se, primeiro espuma, manteiga, e depois de coada, a borra. Uma alquimia que saia da panela, invadia o olfato , enchia a memória e arquivou minha infância, ainda presente aqui, perfumada como o café, macia como o queijo, a trazer a lembrança da manteiga, e da borra com farinha que a avó oferecia no final do preparo.
O domingo parece mais leve ao acordar-se assim inerte, sem pressa alguma, sem preocupação, o pensamento abstraído do mundo.
Tomo o café a sonhar. Volto a infância, quando eu era ainda terra, areia fina nos pés, os joelhos ralados a brincar vendo o avô pilar café cantando e minha avó de lenço na cabeça junto ao fogão fazendo manteiga, e por fim entregar-me o caldeirão frio para raspar. Um caldeirão mágico onde os sabores da infância feliz foram depositados misturados à fumaça de café torrado, que vervo agora na xícara e no mastigar, em silêncio absoluto.