O cara de mil e um nomes
Ontem à noite fui à casa do cara de mil e um nomes. Acompanhado e desabastecido, cheguei, sentei-me e fui servido. Isca de frango e água mineral para a moça abstêmia, um cálice de vinho ao enófilo, uma Brahma para mim. A moça vestia preto; o enófilo, vinho; e eu, uma mistura de branco com vinagre. A moça não sorria nunca; o enófilo, tentava; eu, fingia. Três figuras tristes, sentadas em cadeiras de plástico, numa sexta-feira triste, como geralmente são todas as sextas-feiras, e à noite, para completar o cenário noturno.
Três figuras tristes, irresponsáveis e desmascaradas, postas em círculo, sorvendo água mineral, vinho, cerveja; embriagando-se de ilusão. Um dos partícipes pergunta à moça abstêmia as horas; a jovem desconversa, faz uma careta, um leve pestanejar belicoso e silêncio enorme. Do lado de fora do estabelecimento domiciliar etílico passa uma viatura do SAMU, apressadíssima. Penso comigo mesmo que o chamado deve ser caso de urgência, quem sabe mais alguém acaba de ser atropelado por um veículo de placa Sul-Americana, expresso, como aconteceu a um carroceiro, anteontem, na Monsenhor Clóvis. Nosso carroceiro teve a canela fraturada por um carro velocíssimo que seguia pela contramão da via. Nem teve tempo de anotar a placa, segundo ele, porque essas placas Sul-Americanas são difíceis de serem traduzidas. Assim como as sextas-feiras noturnas, são terríveis e difíceis de ler; a moça abstêmia parece concordar com essa minha impressão oculta, levanta a mão e pede um aparte.
Vem me informar que a água mineral veio com gás. “Um engano, talvez.”, suponho. A resposta parece lhe desagradar, prevejo descontentamentos e sugiro executar uma votação para decidirmos se chamamos ou não o garçom para elucidar o possível engano. Todos participamos da eleição, cujo resultado é dois a um a favor da convocação do trabalhador etílico para prestar esclarecimentos à CPI da água com gás. O enófilo delibera ser o portador do recado; ergue o braço esquerdo em riste, faz movimentos circulares ao nosso recepcionista, que, por estar cabisbaixo e consultando o celular, ignora o chamado. A abstêmia decide, por sua vez, ajudar na tarefa, e começa a assobiar em direção ao garçom, que, mesmo com os altos silvos da moça, não atende o chamado. Ela tenta mais duas tentativas, que se revelam ineficazes. Daí perde a paciência e sugere que ele talvez seja surdo. Eu discordo do veredicto e presumo que talvez seja só mais um caso de desatenção, de nomenclatura, que talvez lhe desagrade ser chamado por gestos e assobios.
Daí que tentei, a meu modo, trazer à nossa presença o cara de mil e um nomes. Sugiro realizar mais uma votação, desta vez para escolher qual o vocativo apropriado devemos empregar para convocar o nosso recepcionista, com a finalidade de solucionar a dúvida da CPI da água com gás. Elaboramos uma lista de vocativos pertinentes: “Moral, major, moço, meu peixe, afavor, iaeh pae, primo, meu amor, potência, ferra, txou, meu patrão, meu querido, ei, guerreiro, Brow, Brother, meu jovem, moço, amigo, parceiro, chefia, campeão.” O vocativo eleito foi o “txou”.
Então é minha vez de tentar. Todos concordam, inclusive a abstêmia, que, com os olhos nadando em luz na oscilação das ondas, como diz o poeta, me deseja boa sorte. Faço os aquecimentos vocais necessários e:
— Ô garçom, faz favor.