A menina das pernas bambas
Já era o quarto dia do curso. As medidas sanitárias mantinham as carteiras bastante afastadas, mas isso não fora suficiente para impedir que a garota de cabelos negros, olhos de jabuticaba, pele cor de verão e pernas longas, que sentava bem atrás de mim, esticasse suas canelas e as recostasse no canto inferior de minha cadeira. Na verdade, o local é destinado a guardar o material didático que não esteja em uso, mas com muita frequência é usado, pelo aluno seguinte, para descansar os pés. Claro que eu mesma já fizera isso várias vezes e possivelmente já provocara a mesma raiva que sentia da minha colega da banca de trás. O fato é que esta noite fora especial. A garota não apenas recostou os pés, ela parecia ensaiar um samba. Sacudia-me de um lado a outro. Não importava se eu por vezes seguidas me movi para trás a olhá-la com ar de reprovação. Ela ignorava meu olhar e até o respondia com um olhar de inconformada. Outras vezes, além de encará-la eu direcionava o olhar para os seus pés. Tudo inútil! Após minha expressão de incômodo os ritmos ficaram cada vez mais ecléticos. Além do samba, seus pés dançaram um tango, um sapateado e até sentira um frevo. Mais irritada, puxei um pouco minha banca à frente. Tudo em vão! Seus pés elásticos assemelharam-se a um baterista de pedal duplo em um show de heavy metal. Parecia enfurecida. Minhas anotações no caderno pareciam o resultado de um eletrocardiograma de um paciente com arritmias supraventriculares. Aguardei que ela saísse para o intervalo, afastei o máximo possível nossas bancas e assim, finalmente consegui concluir a aula. No dia seguinte esforcei-me para chegar antes dela e eleger um local seguro, a salva das imensas pernas dançantes. Poucos minutos após, ela entrou à sala, escolheu uma cadeira bem atrás de outra garota. Antes mesmo de sentar aproximou as bancas, sentou-se, recostou suas penas na banca precedente e iniciou mais uma vez seu baile, assim seus pés fizeram outra vítima.