Sufocado

- O tesão vale mais do que a vida. – Falei murmurando, enquanto olhava pela janela.

- O que? – Marina perguntou.

- As pessoas...

- As pessoas o que?

- As pessoas estão sufocando até a morte em corredores de hospitais, mas as ruas seguem cheias. Os bares seguem cheios...

Marina veio até mim e deu uma olhada pela janela.

- Talvez seja uma forma delas cultivarem a ilusão de que vai ficar tudo bem.

- Mas a que custo?

- É. É pesado. Mas eu não gosto de julgar os outros.

- Eu não consigo não julgar.

Marina me olhou nos olhos e me deu um beijo no rosto, sentou-se na beira da cama e acendeu um cigarro.

- Tenho certeza que não haveria ninguém nas ruas se o Vírus ao invés de matar, causasse impotência, ou perda da libido permanentemente. – Falei, virando de costas para a rua.

Marina se engasgou com a fumaça e caiu no riso.

- Me desculpa... não consegui segurar. – Ela falou, tentando se recuperar.

- Você não acha?

- Eu tenho certeza. Eu mesmo ficaria trancada na minha casinha.

- Pois é.

- Meu amor. A capacidade de sentir prazer é a única coisa que nos separa dos mortos.

- Nunca imaginei você como uma hedonista.

- Eu não sou. Mas não sou ingênua a ponto de esperar racionalidade de que uma sociedade que elegeu o traste que temos como presidente.

- Não dá pra culpar só uma parte da sociedade, meu bem. Tem gente dos dois lados na rua. A irresponsabilidade parece não ter partido. Parece não ter ideologia.

Marina deu mais um trago no cigarro e soltou a fumaça pra cima.

- É. Nesse ponto você está certo. Talvez a sociedade como um todo esteja podre.

- Eu só acho que nos acostumamos demais com a ideia de individualismo pra poder pensar como coletivo.

- Isso é filosofia demais pra mim. Eu sei que no fim das contas sempre vai ter quem discorde da razão, ou simplesmente deixe ela de lado por algo momentâneo. Faz parte da sina de ser humano.

Eu não encontrei mais palavras pra continuar discutindo sobre o assunto e apenas fiquei observando Marina fumar o seu cigarro.

Me sentei na cama, pensativo, e Marina me puxou par ao seu colo. Me acomodei no calor de suas pernas, enquanto ela passava o dedo entre meus cabelos.

- Eu só queria minha vida de volta. – Sussurrei.

- Eu também, meu amor. Eu também. – Ela respondeu.

Do lado de fora, uma ambulância passou acelerada pela avenida, com a sirene gritando. Pude ver os flashes de luz vermelha iluminando o quarto enquanto ela se afastava.

Eu me sentia sufocado. Apesar de ter meus pulmões cheios de ar e estar plenamente saudável.

Mas naquele momento imaginei, que quem estava dentro da ambulância, provavelmente não tinha a mesma sorte.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 01/03/2021
Código do texto: T7196113
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