CAPITÃO MÓR AGUIAR, ESQUINA MARQUES DE SÃO VICENTE Parte 2
CAPITÃO MÓR AGUIAR, ESQUINA MARQUES DE SÃO VICENTE
Parte 2
Todas as manhãs, o primeiro a entrar no armazém era um senhor gordo, bem vermelho, que usava em um dos pés uma bota corretiva, com a sola bem mais espessa do que a outra, empurrando um carro de doces e pipocas pesadíssimo, de madeira pintada de azul e vidro. Mal eu acabava de levantar as portas de enrolar, já avistava o Sr. João subindo a Capitão Mór Aguiar vindo de próximo ao Praia Clube, já suando muito, mancando, empurrando seu carro de ambulante. Parava o carrinho junto ao passeio, entrava no armazém. Embora nós não servíssemos no balcão, para ele eu tinha um copo liso. Eu já estava com seu copo na mão e uma garrafa de Tatuzinho, a cachaça da época, ou Cavalinho, na outra mão. Abria a garrafa, entregava junto com o copo para ele. Ele enchia o copo de cachaça e tomava de uma vez só. Ficava mais vermelho ainda, pegava a garrafa, colocava em um canto do seu carrinho e ia vender seus produtos na Praça da Biquinha. Só ver seu João tomar o copo de pinga sem parar me enrolava o estômago. À noite, seu João retornava com o carrinho vazio, entregava-me a garrafa vazia, e seguia com seu andar claudicante para casa. Nos dois anos que abri o armazém, ele seguiu essa rotina, só descansando aos domingos. Era um dos fregueses de caderneta e ao final do mês só havia a notações de cachaça, que ele sempre pagou certinho. Outra personagem inesquecível era Dona Maria. Negra, muito bonita, com um sorriso de pérolas, bem falante e muito batalhadora. Era viúva de um oficial do Exército e lutava com dificuldades para se manter. Dona Maria fazia de tudo para sobreviver, costurava para fora, trabalhava para confecções e prestava serviços diversos. Meu pai, que conhecera seu marido, na medida do possível franqueava à Dona Maria e dava os prazos que ela precisava para pagar suas compras. Muito honesta, Dona Maria sempre cumpriu seus compromissos. Ela trabalhara como uma das pastoras de Ataulfo Alves e tinha orgulho dessa lembrança. Contava que Ataulfo não era tão bonzinho com aparentava e cobrava bons desempenhos de suas parceiras de palco. Lembro bem o dia que Dona Maria falou com meu pai que iria começar a vender sucos e comidas na praia. Acabou se tornando uma figura icônica da Praia do Itararé, vestida de baiana, com um grande chapéu na cabeça, percorria a areia anunciando seus produtos e, assim, tornou-se uma bem sucedida comerciante graças a sua habilidade culinária e muito trabalho. Alguns anos depois tinha um trailer, um bom carro para rebocá-lo, e vendia muito seus quitutes. No lançamento do Shopping Parque Balneário comprou uma loja e montou uma cantina de salgados chamada “Dendê”, que virou uma referência em boa comida. Seu filho, Jair Luis, acompanhou e trabalhou com a mãe e até hoje é meu amigo. Há uns três anos atrás, Jair me ligou comunicando a morte de sua mãe e fui ao sepultamento de uma pessoa que sempre admirei.
Belo dia, o capitão Eduardo Falcão, ex expedicionário e amigo de meu pai, entra no armazém acompanhado de uma moça alta com seus quatorze ou quinze anos, e apresenta sua filha Suely que viera da Bahia para morar em São Vicente. Ficamos amigos e até hoje mantemos contato, carrego as melhores recordações de uma pessoa de personalidade forte ao mesmo tempo sensível, que faz parte da minha vida até hoje, embora distante. Suely foi, com seu sotaque baiano, uma grande amiga e confidente da minha adolescência. Até hoje conserva aquele ar de menina baiana, embora tenha perdido o sotaque e tenha duas filhas lindíssimas. Chegava na venda para comprar algo e nós ficávamos conversando. Muitas vezes a Landa, sua madrasta, aparecia para saber qual o motivo de tanta demora, pois precisava do que Suely viera comprar. Landa pegava os produtos e eu e Suely continuávamos as conversa. Lembro da vez que Suely cortou o supercílio ao bater no carrinho do seu João. Foi um susto e uma correria. Tivemos uma paquera, mas acima de tudo rola uma grande amizade, embora a vida tenha nos afastado.
E aconteceram muitas outras coisas na venda do seu Miorim. Paulo Miorim, 28/02/2021