Um abraço Especial
Uma Abraço especial - ou T21, umas notas especiais e como defini meu modo de distribuir resultados de provas
Olhando na Facebook hoje vi um desabafo de uma mãe de um príncipe com T21 - e como boa professora não vou explicar, pesquise aí ou entenda no contexto. Mas, continuemos…
O desabafo é bem legal e me levou de volta aos bancos escolares de meus primeiros anos do Ensino Fundamental. Na sala da sétima série tinha uma menina T21, vou preservar seu nome. Ela era esperta e prestativa, mas alguém colocou ela longe de mim na sala e como ela nunca mudou de lugar, nunca chegamos muito perto. Até as primeiras provas ela passou despercebida. Era boa em Matemática, Geografia e História, mas não ia bem em Língua portuguesa. Quando começaram a distribuição das provas e os professores faziam comentários prova por prova, ela erguia e abraçava o colega que tinha tirado nota baixa. Foi assim nas provas bimestrais do primeiro semestre e com os trabalhos de pesquisas. Aqueles que fazíamos lá na Biblioteca Cora Coralina, que era a única do Bairro em nossa época. Aquelas capas lindas de papel sulfite, bem trabalhada, com letras enormes - alguns mais ricos compravam letras vazadas da Compactor! Mas as capas lindas e coloridas não valiam notas. Assim, aparecia um risco vermelho no trabalho lindo dos colegas e a Menina erguia-se e ia abraçar o desiludido da vez.
No segundo semestre, logo depois das férias, entregamos calhamaços de papel almaço coberto com sulfites bem desenhadas para todos os professores - Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Estudos Sociais, Inglês, Geografia, História, Educação Artística e Artes Musicais - que foram suspensas por Lei neste ano e já não tivemos aula de julho a novembro. Imagine o tanto de pesquisas que fizemos! Bem, o nós coletivo inserido neste verbo fazer é subjetivo e prova disto foi que a Menina passou quase uma semana abraçando a classe, ou melhor quase toda classe. Uns cinco ou seis entregaram tudo corretamente e tiveram boas notas e, entre eles, eu.
Quem me conhece, um pouco ao menos, sabe que sempre tirei notas altas, muitas delas suadíssimas até. Andar até a Biblioteca logo cedo, estudar até o meio-dia e subir na tia Wanda e “filar” um almoço praticamente toda a semana não era fácil. E as Enciclopédias Barsas eram pesadíssimas e ninguém podia levá-la em empréstimo sem que um adulto fosse buscar - e pior, nem podia ficar os setes dias, o prazo de empréstimo para elas era de quarenta e oito horas. Só isso justifica metade da sala, porque alguns moravam no Fanganielo, no Morrão e até em Ferraz (de Vasconcelos) , que era outro município e esquece isso de levar livro importante para estes lugares!
Resumo da ópera, ops, do texto, notas abaixo de Cinco para quase todo mundo. Só que menos para estes que fizeram ou compraram pronto - sim, rolava disso, mas os professores não sabiam porque quando descobriam… Isso já é outra história.
Trabalhos entregues e eu fui vendo que a Menina foi se apagando ao final. E me olhava. Sempre fui observadora e lembrei-me que ao final do outro semestre ela já me olhava assim, como se eu tivesse algo de errado e tal. Sei, você dirá que eu era adolescente e não deveria nem notar algo assim, mas notava e não me ressenti, quis pensar no assunto.
Eu e minha alma de velho!
Como já não tinha minha avó Eulina, comecei pensar como ela resolveria o caso e nada me ocorria. Até que veio a primeira prova. De Língua Portuguesa que, detalhe era uma matéria de três professores - Redação, Literatura e Gramática, logo três provas. Foi dez nas três. Ou melhor: A. Era por letras os valores das avaliações. A para maior nota e F para menor ou incompletas. Uma por uma fui recebendo o prova e sentando, mas eu já não estava alegre, os olhos da Menina me captavam logo.
Vieram as outras aulas: Linguagem e Geografia Pensei em algo neste ínterim. O problema era a professora de “Geo”.
Ela não era fácil! Mas era a mais acessível...
Tempos depois...
Aula de Geografia rolando, notas de trabalho e provas sendo entregues e nada de meu nome. os colegas já estavam em crise. Um frenesi tomando conta da sala e a professora calava o burburinho com a ameaça de mudar a nota já! Foi descendo de A para F e eu lá, tomando notas das explicações dadas pela “profe”. Então, depois que trinta e seis notas foram distribuídas a professora diz: “Bem, pelo visto alguém aqui está precisando de ajuda” . Mas a cara dela era de quem diz que precisava de uma surra bem dada e tal. Era a expressão comum que ela fazia para o aluno nota abaixo de F da classe. E completou: “Elisabeth A N, venha aqui.” Sim, ela dizia nome e sobrenome e se você estivesse em perigo real, dizia antes senhor ou senhora. Dedo erguido, mão na cintura, olhar frio e aquele cabelo loiro natural balançando como se estivesse ventando dentro da sala de aula.
Levantei-me e, confesso, gelei enquanto atravessava a sala entre o susto de alguns verdadeiros colegas e os risos jocosos e até felizes de outros - tudo em murmúrios, ninguém queria me substituir, então as reações eram, na opinião daquele bando de adolescentes, discretas. Recebi a prova e o trabalho, coloquei as notas rosto com rosto, para que ninguém visse minha vergonha e, de cabeça baixa, esperei a crítica, que veio, ácida e quase cruel: “Bonito, hein! Resolveu avacalhar justo com minha matéria!”. Eu calada estava, calada continuei. E a professora falou sobre os meus acertos anteriores e que era uma vergonha dupla duas notas tão baixas e tal.
Quando o chão quase se abria sob meus pés, senti o abraço da Menina.
Era quente, protetor, amoroso e cúmplice. Seu cabelinho aloirado caia em minhas lágrimas, que confesso eram reais. Eram lágrimas de vergonha. Vergonha não pelas notas, que eram A e B, vergonha por ferir meus colegas que por mil motivos, alguns justos, não entregavam seu melhor nas atividades. Sim, em meu desespero em querer tanto ser amada e por isso me matar de estudar, acabava ferindo outros.
Foi com a Menina que percebi que uma nota ruim de vez em quando não é tão ruim assim. Continuei tirando boas notas, mas arrumei muita confusão com muito professor pedindo para nunca entregar minhas notas com as dos demais feras da sala de aula. E minha professora parou de entregar as notas dessa forma. Daí para diante passou a falar dos erros em geral e dos acertos e, em particular, conversar com os alunos com piores aproveitamento.
Com a Menina aprendi o valor da empatia na prática. Dali em diante foi que passei a ajudar meus colegas de classe.
Elisabeth Alves do Nascimento
Manaus, Amazonas, 2021