Episódio evangélico dominical
Domingo passado a passeata passou de boa. Foi depois do almoço, hora em que geralmente a cidade cochila. Havia uns vinte fiéis em procissão, entusiasmados e enfileirados, sob um calor de mais ou menos quarenta graus. No entanto, na companhia de um líder episcopal, a discursar em voz estridente e evangélica, multiplicavam-se em centenas. Todos esses evangélicos, me parece, conforme entrevi nos sermões, tinham como missão evangelizar os católicos e excomungar os descrentes.
Estirado no piso de casa, estava quase cochilando, e eis que a comitiva chegou, sem cerimônia e aos berros. Confesso que não fiquei de boa. Mas era domingo, e indispor-se depois da sesta é desaconselhável. Assim, deixei-me convencer da necessidade da passeata e dos sermões. E até atendi uma das missionárias que veio me trazer um jornal da seita e perguntar se eu aceitava Jesus como meu único salvador. Entregou-me o jornal, ignorando inteiramente se eu sabia ou não ler.
A missionária parecia não se importar em saber se eu conhecia o alfabeto, mas estava evidentemente preocupada em me convencer a aceitar Jesus como meu único salvador. Recusei o jornal, fato que contribuiu para início de contradição entre mim e a missionária. Ela quis saber o motivo da recusa; disse-lhe ser analfabeto. Ela não acreditou.
— Você não parece analfabeto, contestou.
Perguntei-lhe como ela havia chegado a essa conclusão. Ela ignorou a dúvida, e insistiu na pergunta:
— Você aceita Jesus como seu único salvador?
— Se Jesus aceitar não dizimistas, aqui estou eu, respondi-lhe.
A resposta desagradou grandemente à pregadora, que me fez ouvir um sermão a respeito da utilidade e necessidade do dízimo na contemporaneidade e antiguidade. A apresentação durou uns dez minutos, e confesso que não dormi durante a exposição, apesar dos cochilos, que desagradaram grandemente à pregadora. A missionária, diante de minha manifesta desatenção, finalmente me perguntou:
— Estou lhe incomodando?
— Não.
Minha resposta monossilábica não a convenceu e, de súbito, virou-me as costas e foi a casa vizinha reiniciar o interrogatório episcopal com outro citadino, quem sabe até alfabetizado.
Esse episódio evangélico dominical me deixou saudoso da época em que o carro do ovo passava na rua, embalado na sinfonia: “Olha carro ovo do passando na sua rua, freguesa.” Gosto do pessoal do carro do ovo. Gente prática e de poucas palavras, que não escolhe freguês por opção religiosa nem condição financeira. Tampouco sai perguntando a seus clientes se eles aceitam Jesus como seu único salvador. Saudade dessa comitiva alimentícia e redentora.