O Circo
Tinha 9 anos e o Circo chegou na Cidade. A cidade tinha duas ruas formando um T. O Circo se instalou no terreno baldio para os lados da saída de Aparecidinha, outra cidade provavelmente com duas ruas. Mas aquilo era uma cidade através de sua ótica de menina. As ruas eram de terra, como as estradas também eram de terra. Tudo era de terra. Terra vermelha, e quando vinham as chuvas torrenciais, as estradas ficavam enlameadas e muito vermelhas.
Percorria uma longa distância desde a fazenda onde morava, lá para os lados de lugar nenhum, porque ali era lugar nenhum - não ligava nada a nada! Só tinha umas poucas trilhas, pelo meio dos cafezais e dos pastos para chegar até a Estrada que dava no Rio Taquara e no Ramal 8, onde, por outra estradinha de terra chegava à Fazenda onde havia o riozinho, os sapos que faziam melodia à noite, o canavial, as amoreiras e a escolinha, que vez ou outra, tinha que correr das vacas para chegar em casa. A casa anterior. E raramente ia até a cidade, porque o Grupo Escolar ficava numa dessas saídas para lugar nenhum. E não adiantava nada ir até a cidade, afinal não tinha dinheiro pra comprar Q-Suco. Aliás, um dia o pai dera alguns trocados para comprar seu cigarro Placar sem filtro, e disse que poderia ficar com o troco. O troco deu somente para comprar um Q-Suco de groselha, que comeu o pozinho com os colegas na sala de aula, e a professora, D. Iracema, muito brava a mandou para fora com a colega, onde ficou entre risos e lambidas no pacotinho já vazio.
Sabia que o Circo estava lá, e ia apresentar Abel & Caim e o drama Santa Luzia! Sonhara em ir, mas aquilo era impossível. Em sua meninice sabia que, se não tinha dinheiro para comprar um suspiro no armazém do Seu Luís, imagina ir ao Circo! Era tardinha de sábado, o pai sentado na cadeira velha de balanço, herdada do irmão, que já estava com as cordinhas de plástico coloridas arrebentando e mal amarradas, conversando com o outro Seu Luiz, o vizinho, que contava histórias fantásticas para seus ouvidos sonhadores. E ao longe, ouviu se o som de um carro que descia a estrada para, provavelmente, a fazenda mais para lá de lugar nenhum. E voltaria. Voltaria vazio. E naqueles tempos, naquelas estradas, um carro vazio significava carona! E o pai, em tom de brincadeira - só percebeu tarde demais, falou para o irmão mais velho pegar uma carona e levá-la para o Circo! Num piscar de olhos, correndo para o quarto, arrancou o vestido velho, que não tinha botões nas costas, ainda no meio da sala. Aquilo foi o suficiente para a diversão até às lágrimas de todos que estavam presentes. Não se importou. Colocou uma roupa limpa, e pronta voltou para a sala. Mas o carro já passara de volta para a cidade, e não haveria carona. Abriu o berreiro, e lá se foi outra onde de gargalhadas, e mais choro. E o pai, em um lapso de compaixão, mandou o irmão levá-la para a cidade, para ver o grande drama – aquele foi, fora as histórias contadas no radio, e as fábulas contadas pelo vizinho, a sua introdução ao mundo artístico – ao mundo do teatro mambembe – ao mundo da fantasia! Depois vieram os livros de Cordel do outro vizinho, que tão gentilmente lhe emprestava e os livros dos Irmãos Grimm que a Secretária da Escola permitia que levasse para casa. Foi assim que sua vida literária começou.