O mocassim de Goodluck
Em primeiro lugar, o sapato não é de Goodluck. É um par de mocassins e são meus. Comprei-os no interior do Paraguai a bom preço, faz uns 10 anos. Fáceis de calçar e descalçar, são macios e me fazem encarar a Humanidade de uns 2 centímetros mais alto.
Pois o encontro com Goodluck foi por motivo de trabalho. Estava na Nigéria, trabalhávamos juntos e ele me apoiava em todos os sentidos. Como estava querendo escrever algo sobre aquele país, Goodluck foi o informante preciso, pois é culto, um humanista e pessoa inclusiva. Havia também Andrew, o poeta, e John, quase se graduando professor de curso secundário.
Era, porém, Goodluck quem me cuidava quase todo o tempo como se eu fosse seu pai. Assim mesmo ele explicava a dedicação:
- "Yes, sir, you’re like a father to me". E contava a sua história de órfão de pai, criado sozinho pela mãe.
Daí, por motivos de trabalho, representando a empresa num evento cultural ou pegando carona para conhecer a cidade, tomamos liberdade um com o outro. Falava sobre sua vida, seus sonhos - um deles conhecer o Brasil - sobre o que acontecia em Abuja e no resto do país, do presente e do passado da Nigéria, sobre a miséria, a malária e outras doenças que assolam o país, sobre a guerra de Biafra, ele da etnia Igbo, e sobre seu casamento com uma mulher da etnia iorubá. E se davam bem, afirmava.
Pois, um dia, o mocassim direito descolou o salto no meio da rua, numa das caminhadas pelo centro. Não teve jeito. A primeira ideia, para mim a mais prática, foi perguntar a Goodluck onde poderia comprar um sapato. Ele logo tomou a iniciativa, tranquilizando-me:
- Vamos achar um sapateiro e consertá-lo agora, sei onde fazem isso - anunciou logo o cuidadoso Goodluck a seu “pai” branco. E toca lá para um centro comercial popular, meio feira, meio shopping a céu aberto. Chegando à sapataria, sentei-me, tirei o sapato, ele explicou a ”tragédia” ao sapateiro e em meia hora lá estava eu de novo calçando os mocassins preferidos.
A amizade foi crescendo. Metódico no trabalho, líder entre os colegas, Goodluck se sobressaía. Logo descobri que era grande jogador de ping-pong, uma de minhas distrações preferidas em Abuja, quando o banzo batia de jeito. Convidei-o a ir à academia que frequentava, onde havia um salão com sinuca e ping-pong, quase sempre vazio. Ali, às vezes, eu jogava sozinho, preenchendo o tempo numa terra estranha e entre gente que alheios males não sente, pois de seu já tem males suficientes. E viva Gonçalves Dias!
Foi Goodluck quem me levou a conhecer a cidade e seus pequenos restaurantes populares, foi com ele que tive coragem de comer comida nigeriana típica em lugares simples, mas de gente acolhedora. Talvez para retribuir toda essa atenção e manter um vínculo produtivo, sugeri ensinar-lhes um português nos moldes do curso de dinamarquês que estudei em Copenhague na década de 70. Começamos as primeiras lições, fizemos planos de continuar por internet, antecipando a tele-educação da Pandemia de 2020. Um dia chegou a hora da partida. Saí de Abuja com duplo pesar, pois tive de deixar, retido na aduana, um rum venezuelano ofertado com muito carinho pelo então embaixador daquele país. Foram muitas cubas-libres não ingeridas. Uma lástima.
Mas voltemos ao mocassim paraguaio consertado pelo sapateiro nigeriano e devolvido com um sorriso triunfal do “filho” africano:
- "Sir, five years garantee".
“Garantia de 5 anos”, Goodluck encampava a promessa do sapateiro.
Num átimo, volto à Pitangui dos anos 50 e 60 e ao mundo pré-consumista daquela época. Não sei se os mais abonados jogavam fora seus sapatos quando o salto descolava, mas no nosso meio não: ali tínhamos os mágicos Ducha, Panta, Agostinho Sapateiro, Vité e outros. Faziam muito milagre. Botavam meia-sola, costuravam “urucubaca” - ou alpercata ou alpargatas - como queiram. Renovavam traves de chuteiras, tiravam pregos da sola, costuravam bola de capota. As roupas também eram de marca: marcada pra missa, marcada pra escola, para o trabalho, para ir ao campo – de futebol – essa fescura de arena é de agora. Os itens do vestuário iam passando de mais velho para mais novo, livros de um ano passados para irmão ou primo da série seguinte. Sapato colegial, olha aí, tinha tachinha na ponta, para aguentar o tranco.
Uns meses depois, já de volta ao Brasil, fico sabendo que a casa de Goodluck e os dois colegas de trabalho, alunos do meu curso de português, tinha caído. Haviam se envolvido num pequeno mundo de corrupção para conseguir algumas nairas extras. Naira é a moeda local. Goodluck e os outros dois talvez não precisassem fazer isso, mas fizeram. Bom, pelo menos, foi o julgamento da chefia e foram demitidos. Emprego com direitos trabalhistas é difícil na Nigéria. De repente, os laços que pretendia manter com meus alunos virtuais foram rompidos abruptamente. Eles, com certeza por vergonha, principalmente meu “filho” africano, mudaram seus números de telefone e cortaram os laços com seu protetor e "pai" brasileiro.
Desse tempo, restou só o conto “Pai Branco, Mãe Preta”, o conhecimento de Biafra, da história da Nigéria e o mocassim que, segundo o sapateiro africano, referendado por Goodluck, tem garantia de 5 anos. Se foi colado em 2016, este ano deverá dar no prego, é sério. O certo é que tudo acaba, menos espuma de barbear. Aliás, isso será o tema de uma nova crônica. Aguardem.