JOGANDO CONVERSA FORA


Rola uma tarde de sábado infinitamente azul cá por estas bandas.Depois de umas turbulências, graças a Deus hoje respiro (respiramos) ares de uma certa tranquilidade.
A doente apresentou melhoras e isso foi o bastante para a casa ganhar novos ares.
Decido por a mão na massa e preparar um cuque com uvas e farofa de canela.
Mas...
Cadê as uvas ? São necessárias uvas pretas daquela qualidade miudinha.São mais adequadas, têm um sabor marcante e desprendem um suco muito escuro, delicioso !
Vou aos mercados mais próximos e não as encontro.
Recorro à vizinha da frente, de cujo parreiral o casal faz vinhos extraordinários.
Dila é o seu apelido carinhoso - nunca soube na verdade qual é o seu nome verdadeiro - então...Dila ! Aquela à quem a Nena quer muito bem.
É uma relação recíproca, visto que inúmeras vezes ela - a Dila - cruza o asfalto trazendo alguns agradinhos de sua horta para nossa mesa, depois é retribuída com outro.
- Que pena ! Acabaram-se as uvas. Mas tenho algumas congeladas e logo as levo pra você Joel, diz-me a vizinha.
Não demora e ela aparece com um invólucro de uvas pretas congeladas.
As coloco para descongelar e eis que novamente surge a abnegada trazendo agora alguns cachos de uva in natura.
-Consegui com a Sônia, minha filha mais velha.Estas estão no ponto exato.
Agradeço e parto para os preparativos da "iguaria". Vêm-me à lembrança antigos natais em que a família reunia-se a torta de uva vinha diretamente de Curitiba, preparada por uma de minhas cunhadas. Digo sem medo de errar que foram as mais deliciosas de que já provei.
Hoje ela prepara tortas em natais celestiais na dimensão reservada aos mansos e puros de espírito.
Lembro de sua calma, da suavidade de seu palavreado, da paciência com as peraltices dos filhos e do sorriso terno, encantador...
Tal como esta à quem agora preparo a torta de uvas , tinha olhos que oscilavam entre esmeraldas e safiras de acordo com as variantes da situação.
Tudo pronto , a massa vai para o forno.Não demora e a cozinha é incensada a cheiros que remetem-me a momentos muito adocicados de minha (nossa ) existência.
Espio pela porta do quarto e percebo minha companheira adormecida.Ao contrário de outros dias,tem hoje a face serena, e lhe imagino sonhando com a irmã que tanto adorava.
Talvez com as uvas de Dila, ou com as melancias sumarentas, vindas de suas plantações, com que Silvana, nossa jovem vizinha do prédio ao lado, nos presenteou, deixando-as num cantinho de nosso quintal.
Avisou-nos com sua peculiar doçura num áudio pelo whatzap e eu as apanhei ao lado do pé de lavandas.
Tanto carinho, tanta generosidade...
E a tarde escorre em ares de doce pureza.Meu bairro mergulha numa serenidade, num silêncio, que com um pouco mais de imaginação seria possível ouvir o fuxico das nuvens, caso elas ousassem macular a paz azulada deste céu que ora se descortina.
Na rua lateral...Nenhum transeunte e o sábado segue o ritual do cheiro de bolo de fim de semana.

Na casa dos vizinhos da esquina, a quaresmeira espreita o vazio do trecho, em seu olhar lilás de flor, em respeito à mãe de Jesus e a trajetória do calvário por que passou o filho seu.
É quaresma e as flores da época começam a dar os ares de suas presenças.

Uma curucaca vadia reestuda do alto do poste a geografia do lugarejo.

Aspiro o ar desta tarde e em pensamentos agradeço a Deus pela graça da recuperação - ainda que lenta - desta que tanto amo, pela energia que me é concedida, pela superação, pelos muitos amigos - virtuais, ou não, que têm demonstrado sua solidariedade para conosco.
Agradeço pela existência de Dila, que tem olhos de mar, vitalidade de leoa, sensibilidade e ternura de uma revoada em céus de fim de tarde e um coração de manteiga.
Com vizinhos assim, só tenho a agradecer.
Aleluia !