ENTROU UM CISCO NOS OLHOS...

Se houve alguém que conheci bem nesse mundo de Deus e que no rompimento do fio de prata da sua existência terrena apresentava indícios de santidade, esse alguém era o meu irmão Mário. Não que ele fosse perfeito...longe disso. Mas a observação atenta e prolongada da vida o persuadiu daquilo que o sábio Salomão vaticinou e que quase nunca ponderamos com a devida seriedade:_”Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”. Pois o meu irmão deu o devido crédito a Salomão, e decidiu abrir mão da sua vaidade pessoal.

Desde tenra idade, disputávamos acirradas partidas de xadrez sob a batuta do nosso pai, que não escondia o orgulho de fomentar entre nós o desejo de jogar cada vez melhor; e ele sabia como ninguém que um dos segredos para a evolução no conhecimento e na destreza é o espírito competitivo, a gana de vencer, a faca entre os dentes e o sangue nos olhos. Mas o que ele não sabia é que levaríamos essa sede de vitória a alguns extremos perigosos.

Certa vez – creio que o Mário tinha nove anos e eu sete – fizemos uma partida disputadíssima, na qual ele sagrou-se vitorioso, e não sei por que cargas d´água, unido a outro dos nossos irmãos, resolveram os dois rir compulsivamente da minha cara. Italianíssimo de tenra idade mas sangue quente, peguei imediatamente um taco de sinuca e quebrei na sua cabeça. Por muita sorte não lhe causei nada mais sério do que um galo gigante.

Doutra feita, foi ele que perdeu, e pra revidar, assumi um ar convencido e debochado. Ao invés de ele ficar agressivo, derramou algumas lágrimas no tabuleiro e tentou dissimular:_”Entrou um cisco nos meus olhos...”.

Nesse andar da carruagem, nossa rivalidade foi assumindo uma dimensão tão enorme e dramática que nós, em nossa fragilidade infantil, resolvemos entregar os pontos e dar um arrivederci ao tabuleiro quadriculado, só voltando a mover peças de xadrez muitos anos depois.

O tempo passou, crescemos juntos e fomos ótimos companheiros de futebol, festas, bailes e viagens, no doce e fugaz tempo da juventude. Depois ele se casou, e eu também. Passou no concurso pra juiz de direito, com direito à prolongada via sacra pelo interior do Paraná, só retornando a Curitiba com mais de quarenta anos de idade. Eu restei por aqui mesmo.

Nossa amizade arrefeceu no tempo que ele residiu fora, mas somente até o dia que me converti ao cristianismo. A partir deste dia, eu não via hora de reencontrá-lo e contar da minha nova e feliz caminhada pelas estradas da vida. Meu amor por ele e pela sua família foi renovado e multiplicado. Começamos a buscar a convivência, sempre que podíamos nos juntávamos pra saborearmos um peixinho, uma carne, e pra degustarmos nossa anual e tradicional caranguejada. O Zize – esse era seu apelido na família – ficou impactado pela transformação que eu passei, e num jantar evangelístico na comarca onde atuava, passou por um processo de conversão semelhante. Ligou todo feliz pra partilhar já no outro dia, eu vibrei de alegria.

Quando foi promovido para a instância final em Curitiba, nossa convivência aumentou bastante. Participamos juntos de festas, pescarias, viagens, retiros e grupos de oração. Ele congregando na Presbiteriana e eu na Católica - um bem-sucedido ecumenismo familiar. Eu ficava admirado com seu rápido progresso espiritual - o coração dilatando de amor e as poucas vaidades escoando pelo ralo.

Após a aposentadoria, viveu longos períodos na praia, pescando, recebendo os filhos e netos, assando um churrasquinho para os amigos, ocasiões em que recordávamos nossas antigas aventuras, e cantávamos canções do tempo de juventude e belos hinos cristãos.

O Mário tornou-se um rio levando a vida de Jesus por onde passava. Tratava bem todo mundo, não fazia acepção de pessoas. Todos gostavam dele e o respeitavam, desde o presidente do TJ até o zelador do prédio. Abriu mão do luxo, de roupas caras e programas sofisticados. Meus cinco filhos o amavam com profundidade e admiração. Não era pra menos, tratava-os como príncipes, levava-os pescar, brincava com eles e se preciso fosse, ouvia seus queixumes.

Há três anos, esse homem de Deus partiu, em consequência de uma pequena cirurgia, fatalidade que o conduziu antecipadamente ao Paraíso. Deixou uma família linda, sadia e bem formada, com cinco filhos e tantos netos que até perdi a conta.

Destacou-se pela retidão, sinceridade, honestidade, bondade e humildade, tendo granjeado muitas amizades verdadeiras ao longo da vida. Tendo em Jesus Cristo o seu Salvador e Senhor, buscou diligentemente colaborar para que seus familiares, vizinhos e conhecidos também estabelecessem amizade com Deus. Juiz honestíssimo e trabalhador, que labutou sempre com total imparcialidade e grande competência. Na véspera do dia em que completaria 71 anos, descansou nos braços do Pai, indo ao encontro de seus familiares já falecidos, dentre eles nossos pais e sua amada esposa Roselys.

Venceu com louvor a renhida partida de xadrez da vida, deixando centenas de parentes e amigos – inclusive eu - com um cisco nos olhos.

(Marco Esmanhotto)