O Olhar
Chegou no horário para a entrevista no hotel da Zona Sul. À espera, dois estrangeiros – um português e um argentino. Sentaram para a conversa. Não ofereceram água, nem café. Sentiu de imediato o antagonismo do mais velho – sentiu desaprovação. Mas tinha a experiência que precisavam e saiu de lá empregada.
Desde sempre, quando sentia o antagonismo, ficava sem ação. Encolhia-se. Embotava o pensamento. Mas por força do trabalho, ficaram próximos, porém nunca se sentiu confortável em sua presença. Seu olhar avaliador, crítico a incomodava. Por cinco anos mantiveram essa relação, tão próxima e tão distante. Logo nos primeiros dias vieram as críticas. Por pequenas coisas. Na maioria das vezes, pessoais. E comparativas. Fez de tudo, desdobrou-se, assumiu todo o trabalho administrativo. Até o café dele ela fazia – ora estava frio, ora estava doce. Nunca perfeito. Se sorria, era escandalosa. Indiscreta! Se estava séria, era mal humor. Reclamava até da forma como ela tratava os outros funcionários - não que os tratasse mal, mas ele exigia submissão, e todos os outros estavam sempre certos – e, logicamente, todos perceberam ao mesmo tempo o que acontecia. E tiravam vantagem da situação.
Cobrava-lhe relatórios gerenciais de vendas, de compras, financeiro e técnico. Quando pedia informações aos demais colegas, ele criticava por estar tomando o tempo de profissionais tão ocupados. Quando não fazia, mostrava-lhe como era incompetente. Além disso, vasculhava-lhe o computador todos os dias quando acabava o expediente. Olhava seu lixo. Dizia-lhe que gastava muito com roupas, mas não perdia oportunidade de lhe passar a mão pelos cabelos e dizer que eram macios. E sempre, sempre aquele olhar cravado! Esmiuçando! Investigativo! Crítico! Desabonador! Porém, trazia os trabalhos da Argentina para ela fazer. Pedidos dos filhos para ela correr atrás e comprar, e ele criticar por não ter negociado o preço. E havia a Esposa – a bela esposa Argentina, que pegava objetos de uso no escritório e levava embora para o seu país. Que tomava o café da empresa, que almoçava na conta da empresa, e que a fazia de motorista para ir às compras. E que lhe dizia todos os dias como tudo na Argentina era melhor! Como as mulheres eram mais bonitas! Os homens mais simpáticos, o povo mais limpo, mais educado, mais, mais e mais.
Ele e a mulher gostavam de ridicularizá-la sempre. Onde iam, ela tinha que estar presente, mas, sempre a mostrar como era inconveniente. Se escovava os cabelos, riam sem poder se conter. Se usava batom, riam porque era engraçada. Se falava, era besteira, se ficava quieta, estava emburrada. Aos domingos à noite, começava sua ansiedade, sua angústia pela semana a seguir. Torcia sempre para a mulher ir embora, mas na contrapartida não gostava da proximidade dele quando ela não estava. E continuava a ter seu trabalho sempre aumentado e criticado.
A empresa cresceu, evoluiu, comprou outra empresa, os salários foram aumentados por força de contratos, e ele fez questão de deixar claro que ela não merecia, mesmo sendo a força administrativa da empresa. Os trabalhos se expandiram para outros países, pagamentos e recebimentos em moeda estrangeira, com isso ele trouxe outra pessoa para compartilhar o trabalho. E foi aí que tudo aconteceu.
Passados quatorze anos, ela ainda não entende como caiu, desmoronou, e foi chutada da empresa – como ladra! Sim, como ladra! Um dia, diferenças financeiras foram apresentadas, documentos revistos. Sentaram os três em uma sala e a chamaram – apresentaram-lhe o desfalque. Horrorizada com o rumo da conversa, emudeceu! Não soube o que fazer! Paralisou! A única coisa que disse - não fui eu! Pediu uma auditoria – foi negado! Pediu revisão dos balanços - foi negado! Implorou e foi escorraçada. Saiu! Cega, pegou o carro que não estava pago, e desceu a longa avenida. Uma vergonha imensa lhe cobria o corpo - não olhava no retrovisor, não olhava nas mãos, só tinha noção da própria respiração que vinha em golpes doloridos, difíceis. Não houve lágrimas, só a boca seca, amarga, e uma dormência que aumentava a cada metro percorrido. Só sabia que havia um poste no final da curva. Acelerou e foi em direção a ele.
Mas não aconteceu. Fez a curva e foi para casa. No estômago, uma bola que teimava em sair. Ficou de pé na sala com os olhos parados não sabe por quanto tempo. Ouviu a campainha, mas não atendeu.
Disseram-lhe que chamariam a polícia. Até acreditou que havia roubado. Não! Roubado, não!
Mas acreditou que tivesse errado nos cálculos!
Talvez! Talvez fosse isso. Estava tão acostumada ao estigma do erro que assumiu para si ter errado, sem perceber que ao longo dos cinco anos fora prisioneira daquele olhar arguto. E levou a insegurança pela vida afora.