A moça equatorial

Vejo essa garota encasacada caminhar sobre os paralelepípedos da quente e ensolarada rua São Pedro. Veste um jeans surrado, desses muito comuns nas vitrines da C&A; calça botinas militares cano curto, pretas e brilhantes, cujo tamanho arrisco ser 44 bico fino. Olhando-a assim, de cerca de três metros de distância, aparenta vinte anos de idade, cinquenta quilos de espessura e uma interrogação quanto a seu signo astral. Será de Áries, solstício ou de Poço das Trincheiras?

A dúvida me segue, mas não vai muito longe. Penso comigo: “Solstício. Só pode.” A moça andante aproxima-se de uma casa arborizada cuja sombra cobre toda a calçada, onde há um assento de madeira. Senta-se no banco, põe a mão no bolso do casaco, retira um chiclete: remove-lhe o agasalho, leva a goma de mascar à boca e atira ao asfalto o plástico que envolvia o chicle. Em seguida, muito calmamente, dirige a mão, desta vez, em direção ao bolso traseiro da calça jeans surrada: pega o celular, acende a tela e, com as digitais, desbloqueia-a.

Sentado embaixo desta árvore cuja sombra me protege de volumosa parcela da radiação ultravioleta, vejo essa moça equatorial com ascendência em solstício sentada distraidamente na companhia do celular e, a julgar pelo semblante e mastigação, até contente, não obstante o calor e os índices municipais de furtos e roubos.

A cena me faz lembrar outra, do filme “Náufrago” (2000), em que o personagem principal, vítima de acidente aéreo, vai parar em uma ilha deserta e tem de se adaptar às condições climáticas e “sociais”. Sem internet, água potável, fest-food, Chuck lança mão de suas habilidades para superar as adversidades climáticas e a ausência de conexão humana. A essa altura, com o objetivo de vencer a solidão e recriar a realidade, Chuck dá vida e nome a sua imaginação ao personificar uma bola de vôlei, batizando-a de "Wilson" .

De certo modo, vi correlação entre as cenas. O celular representava para ela o que a bola de vôlei significava para Chuck: um modo de conexão e de viver em um mundo paralelo. Falava ao celular, como se falasse cara a cara com a melhor amiga, numa intimidade pessoalíssima.

A atitude da moça equatorial não me impressiona, afinal, hoje há muitas casas, carros, garagens, elevadores, geladeiras e outros outrora seres inanimados que falam, gesticulam e alguns até discursam... São ecos do “mundo Alexia”, em que a interação virtual supera à real, e o celular é apenas mais uma ferramenta, dentre as várias disponíveis, de transformar ficção em realidade. Em meio a essa encrenca tecnológica, frequentemente me pergunto por quanto tempo os seres humanos existirão.

Diante do poder dos algoritmos, somos meros figurantes. Um exemplo de como estamos sendo superados pelas máquinas materializa-se em Alexia, a sapientíssima e polivalente assistente universal. Alexia calcula, conversa, interage, executa tarefas simples e complexas, faz pesquisas na internet, ler horóscopo, conecta-se a outros dispositivos móveis e imóveis, acende e apaga luzes, toca músicas, traduz a previsão do tempo para a linguagem humana. E assim, a cada dia, o mundo Alexia domina geral.

Vou ao Banco, e descubro que sou uma senha; na empresa onde trabalho, uma matrícula; na padaria onde compro o pão nosso de cada dia, conforme acusa o computador, sou o “próximo da fila”; no bar, o cliente da mesa 7.

Volto minha atenção à moça equatorial, e percebo que ela, de repente, se põe séria, como se a realidade do mundo policial a chamasse. Desliga o celular, devolve-o ao bolso da calça surrada e muito na moda ultimamente; volta a consultar um dos bolsos da calça. Após breve exame, um maço de Hollywood surge nas mãos da moça equatorial. Abre o invólucro, escolhe um dos cigarros, leva-o aos rosados lábios e, com um isqueiro, inicia o incêndio, dá umas tragadas fumegantes. "Ora, ora", surpreendo-me, "a moça fuma. Pois bem. Cigarro com chiclete, eis uma bonita combinação.", concluo.

A moça equatorial levanta-se do banco, o cigarro à boca, uma chaminé, e desloca-se, apressadíssima, para as bandas do Comércio. Mas antes, vale destacar: para em frente ao plástico que havia abandonado no asfalto, apanha-o, guarda-o no bolso traseiro da calça surrada e acelera os passos, sob a sinfonia das pretas e brilhantes botas militares, possivelmente umas de tamanho 44 bico fino.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 20/02/2021
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