Flausino
As palavras tinham pés e cabeças; mas preferiam voar, feito as aleluias do cupim.
Era 3:00 h da madrugada.
A lua, em plena majestade, coloria os lombos da vaca Trouxada com um tom perolado. Ela mascava e mascava lentamente seu capim regorgitado, assim como a paciência deve ser.
O tendões do meu pai estralavam na cozinha anunciando um novo dia. Bigodes cerrados, camisa xadrez, palha daqui e palha acolá: hora de acender o fogo.
Os gatos despertavam e assistiam o acender do fogo: sabiam que dentro de uma hora, no curral, beberiam o seu leite quentinho. Tomavam seus banhos com suas línguas pentes e deitavam na pilastra da varanda, como abajurs vivos.
Papai e eu conversavamos por diálogos mudos.
Noutros tempos, eu colocaria a bota sete léguas branca, iria até o pasto com a varinha, faria a Trouxada, Pretinha, Rifaina e as demais se levantarem. O cobertor era a copa da mangueira. Sairíamos devagarinho pelo trilho, luz acesa no curral, os bezerros, já vendo as mães, berrando.
A farinha no copo de alumínio já estaria posta.
Eu estaria brigando com Francisco, o gato amarelo, para não lamber meu copo; Mamãe estaria lá no alto da janela, e o rádio ligado.
Enquanto ele assoprava as brasas, o fogo bailava; e logo o cheiro do café recendia na casa. Quando a mulher desligava, o rádio podia ser ligado. Papai colocou numa estação diferente, e o moço, inebriante, soou:
-- "E voe por todo o mar, e volte aqui"...
--" E voe por todo o mar, e volte aqui"...
Naquele tempo, eu não conhecia o mar. Nem imaginava, que quando conhecesse, não ia lá achar muita graça. Sabia apenas que ele era muito grande, e que a garota de Ipanema estava na beira de uma praia.
Descobri anos mais tarde, que o moço chamava-se Flausino. Rogério, na verdade, mas Flausino grudou na memória.
O Flausino tinha muita saudade; uma saudade azul que eu tinha da minha liberdade, e da minha mãe.
Quando crianças, a saudade é um não estar; quando adultos, é um não estar atrelado com os pesos de covardias, egoísmos e remorsos; rejeição reconhecida, amor que bate na cara, queda de conceito do mundo.
O vento era um ladrão, furtava a cor da saudade no peito; compreendi, quando o Flausino embalava:
--" O vento traz você de novo, o vento faz, meu mundo novo".
Compreendi que o sangue é a água, os pensamentos é que são o vento! invertebrado e ultrarromantico.
O vento que sustentava as asas do pelicano voou para o peito do Flausino, trazendo fragmentos de saudades espalhadas. E isso eu compreendi anos mais tarde, quando deixei meus pedaços nos cantos da cidade.
Trouxada morreu.
Pintaram o muro, o banco foi arrancado, a música cessou; mas o silêncio das matas brotou o Amor na memória.
O peito é feito orquestra; maestra são as ondas do mar: as altas escorrem pelos olhos.
Músicas Inspiração: O Vento, J. Quest, Angra Dos Reis, Legião Urbana