Aprendiz
Segunda metade da década de 1970. Tudo se fazia a pé. Percorria o bairro todo a pé - escola, médico, família, farmácia. Sim, a farmácia. E lá havia o bonitão! Que nem era tão bonitão assim do seu ponto de vista, mas todas falavam que era bonitão, então também achava bonitão. Dava umas olhadas para ele quando passava em frente à farmácia, mas alguma coisa não estava muito certa naquela beleza.
Entre treze a quatorze anos, tudo que passasse dos vinte era velho, e com certeza o cara passava dos trinta. O cabelo já começando a ralear no topo da cabeça, meio desgrenhado, e além de tudo tinha a barba. A barba não era alinhada, e o bigode caía sobre os lábios. Nunca gostara muito de barba, e percebia que aquela não era propriamente uma barba bem cuidada. E era magro. Bem magro. Braços peludos. Mas as outras diziam que era bonito, então devia ser!
Naquela época remédio para gripe era injeção. Remédio para tosse era injeção, e a mãe gostava de levar ao médico que receitava injeção. Era o melhor remédio. Nada de xarope ou comprimidos. Comprimidos podiam causar engasgos e morrer. Melhor injeção. E como toda adolescente que se presa, ia para a escola sem blusa de frio, não abria o guarda-chuva, e olha que a distância da escola, para ir a pé, até em casa era longa! Atravessava todo o bairro na Zona Leste paulistana.
Era moda amarrar a blusa de frio azul na cintura, sobre a calça cinza do uniforme. E assim fazia, achando-se o máximo. Então vivia gripada, e a mãe levava ao médico que receitava injeções, em frente à farmácia do bonitão. E quando saía do médico, a mãe já passava na farmácia, pagava as injeções, e todos os dias ia tomar as danadas na farmácia do bonitão. Que não era tão bonitão assim. Além de tudo era velho!
Não conversava com ele porque não conversava com rapaz nenhum. Simplesmente não sabia o que dizer! Sempre fora assim. Via as amigas que conversavam com os rapazes. Tinham assunto! Mas ela não tinha nenhum. Seus assuntos eram livros e futebol. As amigas sabiam cantar em inglês, conheciam todas as músicas das paradas de sucesso. Todas as rádios que tocavam músicas boas. Seu pequeno rádio só sintonizava AM. Então, não tinha assunto. Mas sabia o horário que o feioso trabalhava. Nessas alturas já tinha concebido seu conceito sobre ele – era feioso. Mas ia tomar injeção no seu horário de trabalho. Andava por trinta minutos para ir e mais trinta para voltar, mas como a mãe gostava de comprar remédios naquela farmácia por indicação do médico, ia lá mesmo.
Um dia, enquanto aguardava o rapaz preparar a injeção, achou estranho que ele estava ocupando todo o espaço do quartinho, e ela não podia nem se mexer, porque ele esbarrava o braço nela. Não gostou.
Ficou sem graça, encolhida. E depois achou que ele ficou segurando seu braço acima do cotovelo mais tempo que o necessário, e até pensou que não havia motivos para ser segurada daquela forma. Saiu da farmácia se sentindo incomodada. No dia seguinte, quando chegou a farmácia, ele estava todo sorridente e já entrou no quartinho para atendê-la. E desta vez teve certeza que ele a estava espremendo contra a parede, chegou a tocar seu seio durante a injeção. Foi para casa se sentindo envergonhada!
Era uma sexta-feira e pensou em dizer à mãe que a farmácia não iria abrir, mas sabia que a mentira seria descoberta. Se pelo menos tivesse coragem de contar para alguém que não se sentia bem com aquela aproximação, mas sentiu medo. Se falasse, com certeza achariam que ela provocara. E tinha certeza que nada fizera para aquela situação. Já era quase fim da tarde quando a mãe cobrou a ida à farmácia para a injeção, afinal não teria no final de semana. Foi. Ao chegar o rapaz segurou em seu braço e a levou para o quartinho da injeção, falando em seu ouvido que estava preocupado com o atraso dela. Não conseguiu dizer nada! Ficou muda. Ele preparou a injeção e aplicou, mas antes que ela pudesse sair, trancou a porta e disse que tinha algumas coisas para lhe falar. Abraçou-a, esfregou a barba em seu rosto, lambeu a pele e a beijou. Não foi como o beijinho que o colega lhe dera na escola certa vez. Foi invasivo. Pegajoso.
Sem ter a mínima noção do que fazer, ficou quieta. Nem sequer pensou em gritar, com medo que alguém risse dela. Ele a soltou e disse que queria sair com ela. Que tinha um amigo que ia sair com a namorada e eles iriam juntos. Marcou com ela no dia seguinte na rua de trás - uma rua com terrenos baldios e muito mato.
Não lhe deu qualquer chance de responder, também não sabia o que responder. Só queria sair dali. Sentia-se mal, suja, com o cheiro dele na pele. Então, abriu a porta e ela foi embora, sem antes ele recomendar o horário que ela deveria estar na rua de trás. Ainda pensou por que não em frente a farmácia, mas não perguntou. Rua de trás. Rua de terra, mato alto, sem casas. Foi para casa pensando naquilo. Não dormiu a noite.
Não era medo do terreno baldio, do mato, da rua de terra. Era a certeza que não gostaria daquilo. Mas o que fazer? Na segunda-feira teriam novas injeções. Teria que ir até a farmácia. Já estavam pagas. Não tinha como explicar para a mãe. Tinha certeza que se explicasse, a mãe iria até a farmácia e faria um escândalo com o farmacêutico, mas e se ele dissesse que era mentira e a mãe acreditasse? Não queria nem pensar no que poderia acontecer. Sentia no corpo uma paralisação que, sem saber, nos anos futuros voltaria a senti-la pelos mais diversos motivos. Ficou sentada em uma cadeira a manhã toda, olhando o espaço vazio – este era outro aspecto que se repetiria no futuro.
Parecia que o ar mal passava pelos pulmões. Não iria! Pensando bem, sabia que não iria desde o momento do convite. Só não conseguira dizer. Poderia ir até lá e dizer que não poderia fazer o passeio pois a mãe não permitira. Mas, e a vergonha? Não, melhor não. Mas e como fazer na segunda-feira? Até lá pensaria em alguma coisa. Procrastinou sua decisão. Essa também era outra característica que despontava - perderia muito por ela.
Levantou-se e pôs o uniforme - já era segunda-feira. O final de semana passara tão rápido! Não dormira à noite! Sentia-se cansada, velha. Não sabia ainda o que fazer. Foi para a escola. Não prestou atenção à aula. Não conversou com as colegas. Sua respiração era curta. Não conseguia sorrir nem falar. Ao sair da escola, pegou outra direção. As colegas ainda perguntaram para onde ia. Só acenou de volta e continuou. Aquela rua nunca fora tão longa. Terminava em frente à farmácia. Era meio dia e esperava chegar lá antes das treze horas. Parou do outro lado da rua e ficou observando. O rapaz não estava no balcão. Sabia que não estaria. Sabia seu horário de trabalho.
Atravessou a rua e entrou. O outro balconista avisou que o Zé ainda não chegara. Só respondeu que queria tomar a injeção. Entrou no quartinho, ergueu a manga da blusa e tomou a picada. Saiu andando rápido, pelo outro lado da rua até avistá-lo, andando tranquilamente para a farmácia. Seguiu seu caminho para casa. Avisou a mãe que tomara a injeção. Era a última! Nunca mais em todos os anos futuros entrou de novo naquela farmácia. Naquele dia percebeu que sua meninice tinha ido embora. Percebeu também que poderia tomar suas decisões, certas ou erradas. Percebeu que poderia dizer não, mesmo que desse voltas para isso.