A esquina
Enquanto espero, em pé, encostado na parede ao lado da entrada do restaurante a pessoa com quem combinei um almoço, ponho-me a observar de quantas camadas esta cidade é feita, ou, de quantas camadas qualquer cidade é feita.
Há sempre aquele olhar pelo qual a maioria das pessoas busca enxergar somente o que é belo e tido como normal na vida. As conversas animadas nas mesas espalhadas nas calçadas sob a sombra de um toldo ou de uma árvore numa alameda, o brilho chamativo das vitrines, os casais enamorados passeando de mãos dadas durante o intervalo do almoço. Os sorrisos nas bocas dos amigos. A vida que corre em seu ritmo normal.
Um olhar mais atento é um mergulho numa camada abaixo, onde o ato de viver e relacionar-se com as coisas e com a vida se dá de uma forma, as vezes mais simples, as vezes mais crua. Prendo-me a essa ideia e do ponto onde estou observo a urbe, sua paisagem, seu movimento e a massa de gente que a habita. Procuro o que a maioria ignora. Procuro detalhes pouco perceptíveis, ou talvez, perceptíveis demais, a ponto de serem deliberadamente desprezados. Busco minuciosidades, no tempo, na arquitetura da cidade, na sua história e nas gentes que a compõe...
É meio dia. Sol a pino. Rua estreita, repleta de prédios das décadas de 50 e 60. Alguns ainda mais antigos, lembram o início do século vinte. Estruturas urbanas fantasmagóricas de um tempo perdido anonimamente na história. Nas paredes carcomidas a pintura desbotada agarra-se heroicamente ao reboco que se esfacela e se dilui a cada rajada de vento ou gota de chuva.
Na placa, meio caída no poste da esquina, lê-se: Rua Riachuelo. Está escrita em letras brancas e grandes sobre o fundo azul escuro com manchas de ferrugem. Riachuelo remete a uma batalha naval travada entre brasileiros e paraguaios no século 19, fato apenas sussurrado pelos professores nas salas de aula, nas aulas de história. O nome na placa é uma tentativa dos guardiões da história em trazer a lembrança, de um povo sem memória, a mais longa guerra travada no sul da América.
Na cabeça dos passantes, ocupados apenas em abrigar-se do sol e encher o estômago nos restaurantes espalhados pelo centro da Cidade, Riachuelo é apenas uma palavra num vai e vem de pessoas, de velhos prédios, de lojinhas de turco, na verdade árabes libaneses, de móveis antigos, hoteizinhos baratos, pontos de prostituição e cinema pornô.
Aqui e ali uma pichação nas portas de aço de estabelecimentos fechados devido às inúmeras crises pelas quais a economia local passou. A maioria garatujas ininteligíveis, lixo gráfico, vazios de significado para a maioria dos passantes e só compreensível à mente paleolítica daqueles que os rabiscam. Numa das paredes, porém, um filósofo do caos deixou seu recado: “Use drogas mate sua família e coma merda”.
Do outro lado da rua, pedreiros se amontoam encostados na parede de compensado que esconde uma obra. Roupas sujas, cheiro de suor, cal e cimento da construção. Alguns comem suas marmitas a beira da rua, sem nenhuma cerimônia. Outros fazem digestão estirados ao chão forrado com caixas de papelão como se estivessem tomando banho de sol a beira mar.
Alguns metros dali, uma prostituta loura, de meia idade, abriga-se do sol sob uma marquise. A curtíssima saia jeans gasta pelo uso revela pernas que já foram brancas e firmes, agora, flácidas e queimadas um tanto pelo sol outro tanto pelas diversas marcas de cigarro, fruto quem sabe, de algum jogo sexual sádico de antigos clientes. Na coxa direita uma tatuagem ruim, de crucifixo, bastante borrada, em tom esverdeado daquelas feitas na cadeia.
Espera encostada à parede como a aranha que espera pacientemente que a presa caia em sua teia. Vez por outra chama a atenção de algum passante com um “oi amor!”, ou um “vamos querido?” palavras doces num repertório de vocabulário recheado de lascívia e lubricidade.
Um velho magricela de uma perna só apoiado em uma muleta chega nela. Sussurra alguma coisa ao seu ouvido, os dois trocam olhares, negociam o serviço, o velho aperta o volume na virilha sob a calça, ela pensa um pouco e por fim partem à direita na travessa, em busca de algum muquifo ou espelunca que possa abrigar um momento de luxuria.
Não demora muito e eles retornam, e pela rapidez desse retorno, dir-se ia que a trepada não teria passado de um boquete ou uma punheta pelo valor de meia dúzia de ovos ou mesmo uma passagem de ônibus.
Ela reassume o posto sob a marquise a espera de mais clientes. Ele parte em direção à praça 19 de dezembro, lentamente, apoiado na muleta, hormônios renovados, um arremedo de sorriso nos lábios. Quem sabe quanto tempo levará para sequer chegar perto de um momento de intimidade com uma mulher novamente? Para de vez em quando para olhar nas vitrines coisas que jamais poderá comprar. Retoma o seu caminho e perde-se em meio à multidão sob o sol do meio dia.
No horizonte além da praça 19, acima da linha dos prédios o céu começa a desenhar nuvens escuras. Prenúncio de tempestade vespertina.
Na outra esquina, uma pequena galeria suja e com alguns botecos. Num deles um bêbado quase cai do banco, se agarra ao balcão, se apruma, se equilibra, bebe mais um gole e volta a tarefa de tentar permanecer assentado.
A sessão de cinema do meio dia acaba e a clientela um tanto esquálida invade a pequena galeria. Um travesti de meia idade com o rosto bastante carregado de maquiagem sai ajeitando a calcinha sob o vestido curtíssimo, revelando pernas grossas como toras. Atrás dele, uma garota muito magra e de rosto bonito tenta limpar a língua com um guardanapo enquanto a voz de tenor do travesti ecoa alto “meu amor, mais umas chupadas e você acostuma, vai querer até engolir, é remedinho” e a frase termina em gargalhadas.
Alguns homens saem com olhar desconfiado olhando a volta. Um deles tenta esconder a grande mancha redonda estampada na calça clara. Fruto da polução voluntária estimulada pela obra pornográfica cujo título: The Elefant Man and the Bunny Girls, lê-se em um cartaz meio escondido na penumbra em uma coluna.
A pessoa que eu espero chega. Almoçamos. Conversamos um pouco sobre a vida, sobre como as coisas estão, sobre velhos amigos que já não vemos mais, sobre o rumo que tomaram. São quase sempre as mesmas conversas entre pratos e restaurantes diferentes. Depois do almoço, descemos a grande escada em espiral, despedimo-nos à porta do restaurante e tomamos caminhos diferentes.
Como o homem da muleta, rumo em direção à praça 19 e tal como ele, as vezes olho uma ou outra vitrine sem realmente interessar-me por coisa alguma. São perto das quatorze horas. O céu vem ficando cada vez mais escuro e o vento agora brinca com papéis jogados ao chão que o gari não venceu juntar.
Noto que os pedreiros voltaram à sua construção. A prostituta loura sob a marquise, encostada à parede, de vez em quando troca a perna de apoio enquanto espera longa e cansativamente pelo próximo serviço. O cinema iniciou mais uma sessão onde travestis e prostitutas irão satisfazer a clientela, ali mesmo, nos bancos da sala sob o manto da escuridão.
O bêbado equilibrista foi vencido pela embriaguez, deixou de lutar contra o banco do boteco e agora jaz, dormindo no chão da calçada, atrapalhando os apressados caminhantes.
A escuridão toma conta do dia. O vento ruge em sua passagem entre árvores e prédios. Os cafés recolhem suas mesas das calçadas. Os amantes, antes de mãos dadas, separaram-se rapidamente e cada um toma seu rumo. Apesar disso, a chuva chega mansa, devagar, com alguns pingos. Sei que não vai ficar assim, então também eu apresso-me ao trabalho...
JRBGolem