Do bule de café a Betelgeuse
A garrafa, melhor dizendo: a garrafa térmica vermelha, substituta do bule de café. Além a garrafa. Não muito além. Depende. Além de mim. Aquém da parede. Os farelos de pão do resto de festa, um breve encontro de família que passa pouco tempo junta. Dos comensais, do café da manhã, ninguém teve tempo de ajeitar. O forro manchado de café, restos de pão, tareco e broinha. Talvez no sábado - somos mais felizes que os mineiros de carvão na Europa antiga, já assistiram o filme Germinal? Já nascemos sob a égide da semana inglesa, os sábados, pelo menos depois do meio-dia, já nos pertencem.
A manteigueira. O farelo de pão. A mesa. Sim, deveria falar dela em primeiro lugar, é a base. Não falei. Ausência de perspectiva. De plano. O forro, o desarrumo. A mesa e eu. A manteigueira e os restos de pão, tareco e broinha.
Não sei mais. Há uma falta de mim neste final de noite! Os ruídos. O silêncio dos ruídos. Não há silêncio pior que o silêncio dos ruídos sem linguagem. A sequência falha de significado. O desarrumo. Sim, o desarrumo. Essas emoções que vêm, que influem e não dizem nada. Que nos implicam, mas não explicam. Que nos fazem gritar sem articular sentidos.
A linguagem das torneiras do apartamento. Rebeldes, sempre vazando, de gota em gota dizendo as horas e acrescentando centavos na conta de água. De vez em quando, se rebela o cuco louco, com estardalhaço dispara a contar que estamos envelhecendo a cada pingo daquela torneira. Ouçam a linguagem e o ritmo das geladeiras automáticas, também caguetam nosso envelhecimento.
- Ei você aí, me dá um segundo aí.
As linguagens, por Deus, as linguagens. Aonde foi a linguagem que explica? Aonde parou? O resto é não saber. Sentir os formigueiros aqui dentro e não conseguir traduzir-te para que chores pela minha dor também. Vamos mudar os planos.
Vem aqui dentro. E antes de eu começar a chorar, antes bem antes. Melhor antes que depois. E bailaremos nas nuvens, te contarei a história da “Galáxia Kyklos”. Ou de Vega, de Betelgeuse, a que - má fortuna! - está morrendo. Será, porém, uma deslumbrante explosão. De Ceres, o planeta anão, rei dos asteróides. Da escuridão estonteante do Universo e, ao mesmo tempo, do impressionismo diurno de folhas de árvores bailando ao sol. E viajaremos juntos, muito além, muito além daquele bule de café transformado em garrafa térmica vermelha em cima da mesa de jantar, de almoçar e do café da manhã.
Além, mas agora, aqui. Hic et nunc. Aqui, agora, ali, sim, de volta ao princípio. A garrafa térmica, o café já frio, restos de pão na capanga, torrada de amanhã, a manteiga amolecida pelo calor do dia. Lá fora da cozinha, o gemido da torneira de uma pia se afogando na água que vem. Lá e aqui. Aqui nos despedimos. Tenho de lavar minha camisa "Volta ao Mundo", porque amanhã cedo é segunda. Começa tudo de zero.