Retalhos

De repente, no rosto de outras pessoas eu via você e levava um susto, como o de um fugitivo que tenta se esconder na noite e é pego por um facho de luz. O susto logo passava (a miragem se desfazia) e dava lugar a um opressivo desapontamento e uma vontade urgente de te ver, de te ver de verdade.

Quantas foram as noites em que demorei pegar no sono? Quantas piadas deixei de ouvir nas rodas de amigos porque sua lembrança raptara minha consciência por alguns segundos, desvinculando-me da realidade; e, regressando a ela, todos estavam rindo e eu tinha que rir também, fingindo que estava achando graça? Em quantas ocasiões fiquei parado no portão da sua casa, hesitante, sem jeito de te chamar? Quantas vezes reli as cartas que você me mandava — quando tudo estava apenas começando, e era belo, simples e promissor —, sem ligar para os erros de ortografia e de sintaxe?

Achava lindo teu nome, o jeito que se escrevia — tantas consoantes! Também seu timbre de voz, que ficava diferente quando falávamos de coisas mais sérias. Você não usava batom nem salto: não precisava dessas coisas.

Eu chegava aos lugares onde sabia que poderia te encontrar e ficava olhando em volta feito bobo à sua procura. Ficava olhando sua casa de longe, como se estivesse de tocaia, só pra te ver sem ser visto. Sua imagem passeava por entre versos de poemas, letras de músicas, cenas de filmes e trechos de livros, e eu fui juntando isso tudo como que num grande painel, assim construindo nosso mundo particular.