Perda

Afrânio era um aprendiz de tipógrafo na Corte que, depois do trabalho nas oficinas da Rua da Guarda Velha, ainda tinha disposição para anunciar os pregões dos jornais no Paço. O rapaz era órfão, aprendeu a lidar com as vicissitudes da vida nas ruas da capital do Império. Testemunhar o movimento no Paço, no centro nevrálgico da política nacional era, para o jovem Afrânio, a experiência de amadurecimento que lhe infundia patriotismo e amor pelo seu país. Não só. Afrânio passou a nutrir um vivo interesse pela política também. Talvez o rapaz, naqueles idos de 1889, não tivesse suficiente poder de expressão para exprimir os sentimentos complexos que se apossavam dele sempre quando avistava a carruagem que trazia, quase diariamente, o Imperador ao Paço. Afrânio dizia apenas que sentia orgulho e uma estranha sensação de proteção, ver o Imperador o fazia lembrar-se do seu próprio pai. O zelo do velho monarca pelos negócios do país era conhecido por todos; era do conhecimento geral que o Imperador nutria pelo trabalho uma verdadeira devoção.

Naquele ano, Afrânio contava dezesseis anos, mas já era dono de alguma experiência da vida para saber medir corretamente as proporções de uma grande perda. Seus pais, donos de uma modesta casa de livros numa das travessas da Rua do Ouvidor, morreram, foram vítimas de uma pandemia de febre amarela, mais uma das várias que assolaram aquele fin du siècle nos trópicos. O órfão passou a viver na casa de um tio, nos campos de São Cristóvão. A região era dominada pela imponência neoclássica do Palácio da Quinta da Boa Vista. O aprendiz de tipógrafo acostumou-se a ver as carruagens que iam e vinham do palácio transportando os augustos membros da Família Imperial. Do Imperador, no entanto, quando muito se via, era apenas o branco das barbas.

Um dia, depois de deixar o imponente prédio neogótico da Tipografia Nacional, na Rua da Guarda Velha, Afrânio, com um calhamaço de jornais debaixo do braço, se pôs a caminho do Largo do Paço. Era uma tarde de sexta-feira, 15 de novembro. Sabia-se que, nessa época do ano, o Imperador despachava de Petrópolis, o calor carioca era insuportável. O rapaz não tinha, portanto, pretensão de ver algo interessante. Do ponto onde habitualmente anunciava os seus pregões, Afrânio passou a contemplar o Largo do Paço, a observar os transeuntes: as belas moças recatadas, protegidas do sol sob sombrinhas de renda à francesa; os homens de casaca, bengala e cartola; as crianças serelepes; os oficiais a cavalo; os cativos recém-libertos que, ao aproximarem-se da entrada principal do prédio do Paço, não resistiam ao íntimo e sincero impulso de gritar um "viva a Princesa Isabel!". Tudo isso provocava uma profunda impressão no rapaz.

O Brasil era uma jovem nação, jovem assim como Afrânio, mas, na perspectiva do rapaz, o país era também uma nação forte, determinada, lúcida sobre a realidade das dificuldades, dos dramas da existência, dos desafios políticos e sociais. O que contrastava com a jovialidade da nação era a velhice precoce do Imperador, aquela figura austera, dominada pela barba branca e pela profundeza dos olhos azuis. Afrânio, rapaz curioso, na companhia do seu tio presenciou, certa vez, a cerimônia de abertura das Câmaras, no Senado do Império. A figura do Imperador em trajes majestáticos, ostentando a coroa e o cetro enquanto proferia o "Augustos e digníssimos senhores representantes da nação (...)" o marcaria definitivamente, exercendo sempre, como em reminiscências, um fascínio pelos ritos da monarquia. Mas não era só isso, o jovem Afrânio sentia que ali, naquela figura humana esplendidamente adornada, estava presente não só a síntese de uma tradição, mas uma promessa, um vislumbre de paz e prosperidade para o futuro. Afrânio amava o Imperador.

Depois de algumas horas no Paço, o rapaz conseguiu vender todos os jornais que trouxera consigo. Exausto, dirigiu-se para o cais, a poucos passos dali, e ficou contemplando os contornos do castelo neogótico da Ilha Fiscal. Lembrou-se do baile ali celebrado no último sábado, das luzes magníficas, da música distante, das silhuetas das damas e dos cavalheiros dançando sob o pôr-do-sol. Por um momento, riu-se lembrando também das reportagens dos jornais sobre o evento. Anoiteceu. Afrânio seguiu para apanhar um bonde de volta para casa, em São Cristóvão. Antes de alcançar o local dos bondes, porém, teve uma vaga consciência do talho regular de uma barra de ferro em sua nuca. Os bandidos, estudantes bêbados, levaram seus poucos pertences: um relógio de latão e uma pequena bolsa de couro contendo o montante das vendas dos jornais. Arrastaram o corpo inerte do rapaz para um canto mal-iluminado do local. A guarda do Paço, que habitualmente fazia a segurança do largo, fora deslocada para outro ponto da cidade naquela noite. Afrânio permaneceu desacordado por longas horas.

Por volta da meia-noite, um estranho movimento de tropas invadiu o largo do Paço Imperial. Homens a cavalo e a pé marchavam e faziam formação defronte da entrada principal do prédio. Antes, porém, enquanto o pobre Afrânio jazia desmaiado num canto escuro do largo, uma carruagem, que vinha da Estação D. Pedro II em missão extraordinária, trouxera a Família Imperial. Enquanto as imagens da injustiça que sofrera começavam a ganhar forma, Afrânio fora recobrando a consciência. O rapaz via, sepultados sob estranho nevoeiro, os vultos dos seus algozes, ouvia-os dar gargalhadas enquanto o roubavam. Banhado em suor, ele sentia-se mal, em estado de agonia. Subitamente, as imagens em sua mente se confundiram num emaranhado de lembranças longínquas. O pobre rapaz agora via cenas do velório dos seus pais, podia ouvir o choro convulsivo das mulheres e sentir o peso das mãos que vinham depositar condolências sobre os seus ombros. Afrânio quis chorar, pensava em tudo o que perdera na vida, em todas as dificuldades que enfrentara. Escorando-se na parede do prédio do Paço Imperial, ele conseguiu recompor-se e manter-se de pé. Percebeu uma estranha movimentação na entrada: guardas batendo continência e apresentando armas. O garoto conseguiu distinguir a figura de um senhor de barbas brancas, casaca e cartola acompanhado de uma senhora baixa. Eram o Imperador e a Imperatriz. Depois deles outro casal surgiu, o Conde d'Eu e a Princesa Isabel. Todos foram conduzidos pelos guardas até uma carruagem que partiu dali sob escolta. Afrânio achou tudo aquilo muito estranho. Como não havia mais bondes àquela hora, decidiu partir dali, ainda que não fosse para casa. Varou a noite caminhando pelas ruas da Côrte, pensando em tudo o que perdera.

Vitor Marcolin
Enviado por Vitor Marcolin em 08/02/2021
Reeditado em 05/03/2021
Código do texto: T7179912
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