A Descoberta
O ano era 1979. Cinco de novembro. Levantou cedo como nunca. Tomou banho, colocou a única calça social que tinha, sapatilhas, uma blusa de mangas, afinal a mãe alertara para possíveis golpes de vento. Não conseguiu comer o pedaço de pão seco que a mãe separou. Tomou café puro, como sempre fazia. Ela ainda insistiu para levar o pão seco na bolsa. Fez que esqueceu.
Saiu para o mundo. Tinha 16 anos, muitos sonhos, nada concreto. Era o primeiro dia de trabalho. Foi caminhando ladeira acima pelo paupérrimo bairro da Zona Leste Paulistana. O dia despertava. Não sabia quanto tempo levaria até o emprego. O primeiro de muitos em sua vida. A ansiedade, o medo, as incertezas faziam seu estômago travar. A boca seca no vento matinal. Se pudesse não iria, mas não podia. Fora empurrada para aquele trabalho. Tinha que se sustentar. E sabia que estavam certos. O pai morrera 5 anos antes. Vivia da bondade dos irmãos.
O ponto do ônibus estava lotado. A mãe dera o dinheiro para a passagem. Não podia perder um centavo sequer, senão não voltaria. Iria até a Avenida Ipiranga. No final da tarde, tomaria outro ônibus e voltaria até o mesmo bairro, mas com parada obrigatória no colégio. Fazia o segundo ano do ensino médio, ou o equivalente para a época. Queria estudar em uma faculdade, mas na verdade nem sabia o que era aquilo.
Com o coração aos pulos viu o ônibus encostar, e as pessoas se amontoarem para entrar. Naquele momento teve uma das primeiras lições fora de casa – teria que entrar naquele ônibus custasse o custasse. E entrou! Na bolsa tinha a carteira de trabalho, a cédula de identidade, os trocados para a passagem, passe escolar para a volta, um pente que descobrira logo cedo que era melhor levar que discutir com a mãe, porém pela vida toda nunca o usara. E um lenço. Aquilo também seria sua marca registrada – sempre teria um a mão! E, o estojo de pó! Pó compacto com espelhinho. Qual menina não teria um? E nos braços o quase eterno material escolar.
Logo percebeu que o ônibus pararia em todos os pontos até o final. Que em cada movimento seria jogada para frente e para trás. Que teria os pés pisoteados, a roupa amarrotada, os cadernos amassados, levaria cotoveladas, encoxadas, bafejadas, seria espremida entre as pessoas e que chegaria ao final do dia esgotada.
E foi ali que descobriu que para o resto da vida, teria que se defender. Nunca tinha ouvido a palavra assédio. Sabia sim, que o mundo era dos homens, e que para eles tudo era possível, e que meninas de 16 anos ou corriam ou seriam esmagadas. Preferiu desde o primeiro momento enfrentar! Quando o homem, com o dobro, triplo de sua idade e do seu tamanho a prendeu com os dois braços entre os ferros do ônibus, e encaixou o corpo nas suas costas, ao ponto de sentir seu cheiro, sua saliva e seu hálito em seu pescoço, conseguiu virar o corpo e o encarou, de frente, como se gente grande fosse. E cresceu diante dele! O homem balbuciou uma desculpa e foi para o fundo do ônibus. Uma mulher mais velha ao lado, cochichou em seu ouvido: mantenha sempre o braço dobrado com o cotovelo para trás. Aprendeu a lição.
Desceu do ônibus. Tinha ainda uma longa caminhada do Parque D. Pedro até a Avenida Ipiranga, lá, depois da Praça da República, pela frente. E assim começou seu primeiro dia de trabalho.
Série Assédio, Machismo, Agressões e Desabafos
1. A Descoberta - jan/2021