A ASSOMBRAÇÃO QUE QUASE ME MATOU DE MEDO

A ASSOMBRAÇÃO QUE QUASE ME MATOU DE MEDO

Manoel Belarmino

Corriam os anos oitenta. No meado daquela década, eu já era um rapazinho de 15 anos. Franzino de pernas finas e meio sambudo, pobre, pé de chinelo e de calça remendada nos joelhos e nos fundios. Matuto e feio que só a peste, mas já enxerido, querendo namorar com as mocinhas.

Como sempre, naquele tempo, eu deixava o Boqueirão para ir à feira livre da Serra Negra. Saía sempre logo cedo no carro da feira e muitas vezes só retornava no fim da tarde. Naquele tempo, as diversões principais no Boqueirão e em Serra Negra eram: a feira na cidade, as novenas e os bailinhos de radiola no Boqueirão e nas comunidades das redondezas.

Na tradicional novena da Serra Negra Velha, na capelinha de Nossa Senhora Santana do Cemitério Antigo, eu arranjei uma namoradinha. Uma mocinha dali da comunidade da Serra Negra Velha, filha de um ex-delegado de polícia e quase coronel. Eu, um tabaréu da roça, filho de trabalhador de alugado, não poderia de jeito nenhum namorar a filha de um poderoso como aquele senhor da Serra Negra Velha. O velho, pai daquela mocinha, de poderes político, econômico e de armas, já havia sido delegado de polícia nomeado pelo governador do Estado da Bahia.

Eu tremia que só vara verde quando algum engraçadinho dizia:

- Cuidado, Manoel! O pai da moça disse que quer pegar você conversando com ela.

Oh medo da gota serena eu tinha!

Mas esse não foi o maior medo que eu já tive na minha vida não.

Eu estava encegueirado pela filha do senhor da Serra Negra. E, mesmo com medo, fazia de tudo para me encontrar com a mocinha, com a filha do ex-delegado. Era um namorilho de matutos. Ela não, mas eu era matuto demais.

Um certo dia, eu soube que ela iria dormir na cidade, numa noite de sábado. Pedi emprestado um jegue ao meu tio Bié, coloquei a sela e os arreios, e fui para a cidade. Naquele dia, eu só retornaria tarde da noite, depois de eu ver a minha namorada.

Acho que a família da mocinha desconfiou que eu ficaria na cidade naquela noite. Aí não permitiram que a mocinha ficasse na cidade. Depois da feira, havia retornado com as irmãs para a Fazenda da Serra Negra Velha.

Quando eu percebi que a mocinha, a minha namorada, não estava na cidade, eu peguei o jegue, coloquei a sela e os arreios, e resolvi retornar para o Boqueirão. Peguei o caminho histórico da Serra Negra Velha. Pensativo, passei pela Rua Velha, pela Lagoa da Mata, e quando cheguei na Ladeira das Almas, de repente, decidi mudar o caminho. Resolvi me meter a criar coragem e ousar passar na frente da casa da minha namorada, na frente da casa grande. Já era noite. Noite de inverno do mês de agosto. A noite era de Lua no meio do céu, mas intercalada com a claridade lunar e as sombras das nuvens de inverno naquele pé de Serra. Passei na frente da casa grande da fazenda onde morava a minha namorada; avistei as portas e janelas abertas. Lá dentro, vi o alumiar encarnado dos candeeiros, mas não avistei a minha namorada. E, sob o telheiro da casa grande, na penumbra da Lua e da claridade que saía pelas portas e janelas, avistava-se pessoas sentadas conversando. Os cachorros latiram ao me ver passando. Cachorros brabos, valentes. Cachorros de terreiro de fazendas.

Uma voz meio rouca se ouviu sair de sob o telheiro da casa grande:

- Cachorros! Se calem!

Sem dúvida, era a voz do senhor, pai da mocinha da Serra Negra.

Depois dali, eu teria que passar pela frente do Cemitério Antigo da Serra Negra Velha, mas eu já tinha passado várias vezes ali à noite. Nunca vi nada de estranho ali. E eu continuei andando, distraído, com os pensamentos nas nuvens (ou na minha namorada), deixando o jegue que me conduzia caminhar livre, de rédeas soltas. De repente, quando eu já estava quase na frente do cemitério, avistei uma imagem que parecia uma pessoa toda vestida de roupas brancas, e só a cabeça estava de cor preta. O que era aquilo?!

Eu disse comigo mesmo:

- Meu Deus! Pela primeira vez, na minha vida, eu estou diante de uma alma do outro mundo!

O medo tomou conta do meu corpo e da minha alma. Fiquei todo arrepiado, trêmulo... os meus cabelos estavam espichados de arrepios... segurei as rédeas do jegue e parei. Fiquei parado... por alguns segundos. Não sabia o que fazer. Não podia voltar e não tinha coragem de seguir. Ali, na minha frente, encostada na cerca da cancela próxima do cemitério, estaria uma alma do outro mundo. Os mais velhos ou as pessoas da minha idade sabem que ali na frente do cemitério, na estrada, sempre teve uma cancela grande. Pois é. Eu teria que parar ali e abrir aquela cancela onde a alma do outro mundo estava. Mas como não tinha outro jeito, eu teria que seguir. E mesmo com medo, liberei as rédeas do segue e segui andando. Quando parei na cancela, quase morrendo de medo, percebi que aquela alma do outro mundo, vestida de branco, era uns panos das prensas da casa de farinha. As mulheres lavaram os panos brancos das prensas e colocaram para secar na cercas, e o vento da noite fez com que os panos ficassem enrolados sobre um mourão da cerca fazendo com que quem avistasse de longe aquela coisa acreditasse que fosse uma pessoa viva ou uma alma do outro mundo.

Aí eu senti um alívio. E o medo acabou ali. Se eu tivesse voltado por outro caminho, até hoje eu imaginava que eu teria realmente avistado uma alma do outro mundo.

Eu segui a viagem. Mas confesso que eu nunca tive, até hoje, um medo tão como esse da alma do outro mundo que não era.

Na mesma semana, o meu namoro com a mocinha, filha do senhor da Serra Negra, acabou. Mas eu nunca esqueci desse acontecido, e desse maior medo que já tive na minha vida.

A alma do outro mundo, aquela assombração, que não existiu, quase me matou de medo.

Manoel Belarmino dos Santos
Enviado por Manoel Belarmino dos Santos em 07/02/2021
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