O bispo e o carnaval


      1. Moro em Salvador, desde janeiro de 1958.           Quando aqui cheguei, vindo do Ceará, a cidade se preparava para o seu carnaval que, naquele tempo, não era a loucura que é hoje. Os clubes promoviam bailes de gala para os sócios; e para os não sócios, se pagassem o ingresso.
     
2. Mas bom mesmo era o carnaval de rua. Pulava-se nos blocos; atrás dos trios elétricos; e sozinho, vestindo as famosas mortalhas, usando máscaras e cheirando o lança-perfume Rodouro, então permitido.
     
3. Ainda era um carnaval feito, com carinho, para o baiano brincar; mormente para os soteropolitanos.      Turistas foliões, muito poucos.
     O palco principal, por onde passavam as principais atrações, era a Avenida Sete de Setembro (Avenida Sete), movimentada, do Campo Grande à Praça Castro Alves. Depois ganhou a Rua Chile e o Pelourinho.
     
4. Eu, recém-chegado em Salvador, com a ajuda de um tio, frade franciscano, morei, até março de 1958, no Convento de São Francisco, no Terreiro de Jesus, Pelourinho. Um local muito pesado. O carnaval isolava o convento. Saía-se de seus tranquilos claustros e dava, de cara, com a multidão tresloucada. Fazia medo. 
     
5. Minha vontade de pular atrás de um trio elétrico era tão grande que, num abrir e fechar de olhos, fui parar na Avenida Sete e embarquei no primeiro trio que apareceu. Entrei com tudo na folia.      Quando me dei conta, estava no coração da multidão enlouquecida. Quase morri esmagado. Na Praça Castro Alves, dei no pé, prometendo nunca mais pular atrás desse tal de trio elétrico.
     
6. E olhe que, naquele distante 1958, os trios eram muito pequenos,comparados com os de hoje, enormes caminhões, feericamente iluminados, carregando poderosíssimas caixas de som, capazes de estourar os tímpanos de qualquer cristão. E os cantores, os artistas, os músicos? Não estão nem aí para o excesso de decibéis.
     
7. Este ano, os trios silenciaram. A Covid-19 fê-los calar. Esse silêncio vai mexer com muita gente. Principalmente os foliões que se prepararam para pular atrás dos trios, provando que ainda não morreram, conforme diz a canção do privilegiado Caetano Veloso - "Atrás do trio elétrico/ Só não vai quem já morreu".
     
8. Aproveitando o silêncio dos trios, comecei a ler livros e revistas sobre o Rei Momo e sua festa. Não é que de repente encontrei esta página do saudoso Dom Hélder Câmara (1909-1999) sobre o carnaval, com a coragem que lhe era peculiar. E vou transcrevê-la.

     "CARNAVAL é a alegria popular. Direi mesmo, uma das raras alegrias que ainda sobram para a minha gente querida.  Peca-se muito no carnaval? Não sei o que pesa mais diante de Deus : se excessos, aqui e ali, cometidos por foliões , ou farisaísmo e falta de caridade por parte de quem se julga melhor e mais santo por não brincar o carnaval.  Brinque, meu povo querido! minha gente queridíssima. É verdade que na quarta-feira a luta recomeça, mas ao menos se pôs um pouco de sonho na realidade dura da vida!"

     
9. Dom Hélder Câmara, cearense, que conheci pessoalmente; o incomparável e corajoso defensor dos direitos humanos! Nem os ditadores do golpe militar de 1964 ousaram tocar, ainda que de leve, nesse irrequieto prelado. Rebelou-se, desde a primeira hora, contra o regime político opressor. 
     Seu prestígio era tão grande perante o mundo que não o impediram de escrever o que quisesse, por exemplo, sobre o carnaval, hoje uma festa profana, absolvendo os foliões, pecadores ou não. 
    

     
            
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 05/02/2021
Reeditado em 05/02/2021
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