Duas moscas, quatro braços, o velho e eu

Eu viu tudo. Duas moscas, quatro braços, o velho e eu. Uma tragédia. Eu viu tudo. “Eu” quem? Não sei. Desconheço-o perfeitamente; sei, porém, que esse “eu” estava lá. Lá onde? Por enquanto, amnésia momentânea me impede de lembrar e me ajuda a construir o mistério, a guardar provisoriamente o segredo e preservar a cena do crime e os detalhes da emoção. Os detalhes... Antes, não obstante, é necessário esclarecer o quê.

Eu, um cliente.

— Moça, um café. Faz favor.

— Expresso?

— Quanto?

— R$ 7,00.

— E o açúcar?

— É grátis.

— Vou levar um 1 kg.

Duas moscas, quatro braços, o velho e eu. Uma tragédia. Onde? Lá, ainda não identificado. Duas moscas, sendo uma líder e a outra, comparsa, amadora, ambas famintas e expressas, sobrevoaram o perímetro, em reconhecimento da área, povoadíssima. Em seguida, a comandante autorizou o desembarque; a amadora acatou: aproximou-se do nariz da moça do café expresso, pousou e anunciou o assalto. A líder encarregou-se do açúcar; a amadora, da refém. Houve resistência por parte da refém em deixar-se dominar, e foi solicitada ajuda dos universitários e, na ausência destes, o auxílio da polícia.

A amadora e a líder desaprovaram o ato de valentia, e o clima ficou temperado para a moça do café expresso. Em represália à ação irrefletida, a mosca líder disparou grave ameaça de morte à moça do café expresso, que, aflita, rezou dos pais-nossos e recebeu dois endiabrados palavrões, os quais lhe atingiram levemente a orelha esquerda. Ao cabo de longo silêncio, os universitários não compareceram; a polícia também não. Mas enviaram um substituto: um velho, um velho, sim senhor.

Um velho, com braços robustos e rosados, muito saudáveis, como se confirmará adiante. O varonil senhor chegou-se ao balcão e apresentou-se para negociar a libertação da refém. A líder expôs as exigências, aliás, a exigência: 1kg de açúcar em troca da libertação da refém. O negociador propôs um acordo menos adocicado. Alegando a não interrupção dos negócios e a importância que o açúcar exercia nesse quesito, ofereceu, em vez de 1 kg de açúcar, um 1kg de sal. A líder, intransigente, recusou a oferta.

Com os braços em riste, o negociador sustentou que aquela era a única proposta que estava disposto a oferecer. Não estava ali para ganhar tempo. Tinha outras negociações urgentes a resolver, dentre as quais: duas tentativas de suicídio, cinco rebeliões em presídios, sete desobstruções de estradas e outros dois sequestros com cativeiro mal localizados. A líder censurou a pouca disposição para o diálogo do negociador, que, em sua defesa, replicou, alegando que não estava ali para fazer terapia. Sua missão era evitar a interrupção dos negócios, capítulo para o qual açúcar era indispensável. Seu objetivo resumido, portanto, era impedir que levassem os doces grãos e, se indispensável para os negócios, livrar, de danos físicos e morais, a profissional do café expresso.

Descontente com o rumo da negociação, de súbito, a mosca líder abandonou o açúcar e voou ao encontro dos braços fortes do negociador. Chegou bastante rapidamente e foi recepcionada com uma única e voadora braçada, que a deitou sobre o colchão de açúcar. Esmagada pela força braçal de um veterano de braços rosados e robustos, incrivelmente fortes, expirou a mosca líder. Sem mistério nem rezas, choros nem velas, morreu a mosca líder.

A ação delituosa parecia haver moscado, suposição que se confirmou. Depois da morte da mosca líder, a amadora, agora órfã, não foi encontrada para prestar esclarecimentos. No intervalo entre a braçada e o colchão de açúcar, evadiu-se silenciosamente do local do crime. Sumiu-se. Não deixou rastros, mas deixou o açúcar, fato que concorre diretamente para o sucesso da operação.

Eu viu tudo. Foi numa lanchonete de uma rodoviária municipal, povoadíssima, quando o sol já havia nascido e os cachorros ainda dormiam; depois de sequestro moscado —envolvendo duas moscas, sendo uma líder e a outra, amadora—, quatro braços se uniram, agradecidíssimos, sendo dois femininos e dois rosados e varonis, militarizados. Eu viu tudo. Duas moscas, quatro braços, o velho e eu. Uma tragédia.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 05/02/2021
Reeditado em 06/02/2021
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