Sob a máscara

Cheguei à estação, comprei o bilhete, venci a catraca, subi e desci dois lances de escadas e tomei o meu lugar na plataforma. Não houve demora. Num movimento rápido de cabeça, vejo chegar o comboio vermelho da CPTM. Só não entrei rapidamente, como faria por instinto, porque cedi espaço a uma senhora que se avizinhou de mim no momento exato em que o trem abria suas portas. "Opá!, pode passar, senhora". Como fosse uma tarde de domingo, não houve concorrência para tomar os assentos. Sentei-me desconfortavelmente num daqueles bancos ordinários da Companhia Paulista, mas, repare, não digo isso por puro prazer em reclamar, como as pessoas fazem comumente, é que tenho proporções físicas incomuns -- se minha patela falasse não haveria dicionarista capaz de catalogar-lhe os impropérios. Depois de desviar a mente dessa pequena injustiça dominical, olhei através da janela (sempre hermética) e me deixei contemplar o pôr-do-sol. Seguia do subúrbio para o centro, nesse domingo eu iria comungar na Sé.

Duas estações depois senta-se ao meu lado uma moça bonita: tinha olhos verdes-mel-com-limão, cabelos castanho-claros e um pescoço longo; usava uma camisa social e uma calça de tecido leve. Estava, portanto, decentemente vestida para o meu crivo de modéstia, mais hesitante do que exigente. Vi na minha rede social uma publicação que ironizava a implicância que algumas pessoas fazem àquelas que vivem com a cara pregada na tela do celular: uma foto tirada do interior de um bonde em São Paulo nos anos 1920 mostrava todos os passageiros com a cara pregada no... jornal. A diferença está no fato de que os celulares são mais práticos, porque são compactos, não preenchem o espaço à frente do leitor como as imensas folhas brancas dos jornais de outrora que, além de incomodarem pelo tamanho, irritavam pelo farfalhar das páginas quando viradas. Pois bem, a moça ao meu lado não estava olhando para o celular, ela estava interessada no pôr-do-sol através da minha janela.

No ônibus, no trem ou no metrô é mais fácil observar com naturalidade as moças que estão ligeiramente distantes porque, se os olhares se entrecruzarem, basta um desvio rápido para um ponto qualquer, menos interessante e perigoso. E quando, por fatalidade, os olhares se cruzam, um estranho e visceral reflexo de afastamento é desencadeado, como quando o sujeito aproxima o dedo da chama de uma vela ou quando, por puro divertimento, acende um palito de fósforo e espera que as chamas consumam toda a extensão da pequena peça de madeira, até fazer cócegas nos dedos. Penso que se um estrangeiro, olheiro de alguma agência de moda, viesse à Pindorama com o propósito de aliciar as beldades do seu gosto, ele não teria grande dificuldade em encontrá-las: bastaria se locomover de condução. Numa simples e rápida viagem até o centro da cidade, o passageiro tem uma mostra de praticamente todos os tipos e biótipos característicos da sociedade. Eu tinha certeza de que a moça ao meu lado era uma dessas beldades, mas não me atreveria a olhá-la mais, era impossível.

Seguimos, então, sentados lado a lado, viajando do subúrbio para o centro. Os passageiros que nos faziam companhia estavam todos perscrutando a tela dos seus celulares, exceto a senhora que recebera minha gentileza ao embarcar, ela mantinha os olhos em qualquer ponto vago do piso do trem à sua volta, ou em qualquer movimento interessante que surgia através da janela. Pude observar que trazia um rosário em torno do pulso, talvez estivesse a caminho da missa também. Antes de chegarmos à estação Barra Funda, que, com o perdão do trocadilho fácil, não é uma barafunda aos domingos, ouço um abafado "moço, por favor, que horas são?" em voz de mulher. Era ela, a donzela ao meu lado desejava saber a quantas andavam o deus Hélio através do seu percurso pelo céu. Já era praticamente noite. Sua pergunta me causou estranheza, ela quebrou a atmosfera de silêncio do ambiente, eu não esperava ouvir sua voz. "Quinze para as sete", respondi sorrindo. A moça não carregava um celular. Tão estranho quanto ouvir sua pergunta e me ver, assim, transformado num participante indireto das suas cogitações, foi perceber que ela não pôde ver meu sorriso quando respondi. Três minutos depois, chegamos à Barra Funda. "(...) Ao desembarcar, cuidado com o vão entre o trem e a plataforma". Levantamos, demos poucos passos, abriu-se a porta, desembarcamos. Ela ia na minha frente. Antes de subirmos as escadas, porém, eu parei, tive um pensamento súbito, do tipo mesmo que faz um homem parar, estancar: "Ela não me viu sorrir", pensei, em devaneio, "mas... eu também não a vi sorrir, não sei... talvez ela tenha sorrido quando respondi".

Acho que permaneci nesse estado de devaneio por algum tempo porque, próximo a mim, encostada na amurada da estação, aquela senhora que se beneficiara da minha gentileza quando de seu embarque, há meia hora atrás, me olhava com curiosidade. Notei que a região em torno dos seus olhos franzia-se ligeiramente, assim como sua testa; e suas orelhas movimentavam-se levemente, assim como seu abdomen. A velha não estava rindo, mas gargalhando de mim, divertindo-se soberbamente com a minha situação. Dei de ombros. Não tinha como saber com certeza. Todos nós usávamos máscaras.

Vitor Marcolin
Enviado por Vitor Marcolin em 31/01/2021
Reeditado em 31/01/2021
Código do texto: T7172700
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.