Crônicas da Infância  - O defunto-vivo

     Nas proximidades do Campo do Escorrega, havia vários bares, onde os bebuns de plantão iam encher o chifre de cachaça, como minha mãe bem dizia. Lá pelas tantas, sobretudo nas tardes de domingo, saíam dos bares cambaleando e, atraídos pelo afluxo de pessoas no campo de futebol, vinham se misturar com aquela multidão. Mas, não tardava, e estavam escornados em algum canto e, em pouco, já dormiam a sono solto, embalados pelo álcool e pelo calor da tarde.
     Foi com um desses bêbados que ajudei, certa feita, a fazer uma grande presepada. Sem que se combinasse direito, cada um foi providenciando os itens que seriam usados num suposto velório do bebum desacordado. Uns trouxeram flores, outros improvisaram uma cruz, alguém trouxe uma vela. Rapidamente tudo foi preparado. O pobre coitado, colocado em decúbito dorsal, de mãos postas, enfeitado com as flores, com a grande cruz na cabeceira e a vela iluminando tudo.
     O “velório” foi o maior sucesso, e logo toda a multidão deixou de lado o jogo, por sinal, desinteressante – era uma partida do segundo quadro do time da Gamela contra o time da Catarina. Uma diversão só!  Algumas mulheres presentes faziam o papel de carpideiras e choravam que era uma beleza. Tanta agitação chamou a atenção do goleiro da Catarina, sobrinho do defunto/vivo.
     O goleiro abandonou seu posto e veio tirar satisfação sobre o desrespeito com o tio dele. Chegou gritando nomes cabeludos e chutando para longe a vela e as flores que cobriam o bebum, que agora começava a voltar a si, sem entender nada. Só resmungando: Eu morri, gente? Não fala isso, não!  As pessoas foram se afastando, e o sobrinho, indignado, apanhou a cruz feita com duas hastes de eucalipto, de mais de um metro de comprimento, e saiu distribuindo golpes nos mais próximos, principalmente, naqueles que julgava serem os responsáveis pelo ato de desrespeito.
     Foi a primeira e única vez que vi alguém bater nos outros com uma cruz. A confusão se espalhou pelo campo e a partida teve que ser interrompida. Só com a chegada do jipinho da polícia é que a paz voltou a reinar e puderam recomeçar o jogo.
     O bêbado, ainda muito cismado, se benzia o tempo todo e prometia que nunca mais beberia nada de álcool. Resmungava, filosofando: Bem dizia meu falecido avô que amigos são só os bagos do cachorro que estão sempre grudados um no outro. O resto... Só quer ver a caveira da gente, com um grilo cantando dentro. Vão para os infernos, cambada!      
    Porém, não passou meia hora, estava de novo no balcão do bar mais próximo, afogando as mágoas na cachacinha ordinária que ali serviam.
                            
Fernando Antônio Belino
Enviado por Fernando Antônio Belino em 30/01/2021
Reeditado em 21/06/2021
Código do texto: T7172074
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