Ô loco, meu
A primeira vez em que vi dona Lourdes eu estava trepado no muro branco da Monsenhor Clóvis, à altura da celebrada Igreja de Santa Maria Madalena, coberto por sombra larga de uma árvore enorme, a observar a passagem de fastiosa manhã dominical. Era por volta de 2002 a data, as horas ignoro, mas me lembro perfeitamente do momento em que uma voz me interpelou:
— Desce daí, menino!
Era uma voz aguda e vibrante, ao mesmo tempo doce e severa, como essas proferidas por mãe ante a cenário de perigo a filho. Era assim a voz da senhora Lourdes, uma dona visivelmente católica no trajar e que, mais tarde descobri, também era excelente na arte de proferir palavrões, de queixar-se dos motoristas que estacionavam o carro em cima da calçada de sua morada, de recomendar a casa do diabo aos jogadores de futsal da Quadra Municipal, cuja bola vez por outra tomava o destino do telhado da amável senhora Lourdes, que morava de cara para esse campo de concreto armado.
Todos a respeitávamos, inclusive a polícia, tanto por sua sabedoria quase centenária como por seus modos excêntricos ao se expressar. E hoje dona Lourdes não está, como costumava, à porta de casa, a saudar os passantes com seu modo tão seu de ser.
Muita gente a conhecia, inclusive a polícia, e a admirava, inclusive a polícia, e poucos palmarinos sabem que essa católica senhora morreu. Sua morte não foi divulgada no rádio nem nos carros de som, tampouco é noticiário nacional. Dona Lourdes morreu, e sua morte não é noticiada à comunidade. É o diabo! O que é notícia afinal?
Dicionário me diz que é, dentre outras definições alongadas, informação sobre assunto de interesse público. Ora, a senhora Lourdes era ícone municipal. Sempre tão senhora de si, frequentava missas dominicais e, no intervalo, aconselhava jovens rebeldes. Há quase um século residia na Marechal Deodoro, 168, de frente para a Quadra Municipal, onde recepcionava motoristas desavisados e imprudentes, dava as horas a passantes visitantes, excomungava bolas voadoras, e sua morte não é notícia?
O que é notícia afinal? O governo consumiu quinze milhões de reais em leite condensado, e eis aí um exemplo fiel de notícia. Eu concordo. Realmente os gastos públicos devem ser transparentes e notórios a todo o povo da nação, inclusive os gastos com sal, tempero salgado no qual, segundo foi divulgado, o Executivo desembolsou dezoito milhões de reais na compra. Depois o Ministério da Saúde gasta outros milhões para recomendar à população a diminuição no consumo de sódio, e também essa recomendação será notícia. Eu concordo, pois os especialistas médicos são de comum parecer ao afirmar que sal influi na pressão arterial, que por sua vez contribui para incidência de enfartes, derrames e até impotência sexual. Não concordo é com o silêncio em torno da morte da senhora Lourdes, do fato de sua morte não ser notícia.
É o diabo! Dona Lourdes morreu e lhe foi negado um aviso de rodapé em um noticiário local, um recado em carro de som dando conta de sua partida e convidando os conhecidos para o último adeus. A uma senhora tão católica, tão comportada, tão ordeira, ainda que às vezes e por necessidade da ocasião, tão agridoce no falar, foi-lhe negado o direito de ter seus predicados reconhecidos publicamente.
Morreu a senhora Lourdes e poucos citadinos e ruralistas ficamos sabendo. Não foi notícia, mas a mídia tem divulgado frequentemente que um tal “Fiuk”, participante de um tal BBB21, e filho de um tal cantor Fábio Junior, declarou, para os devidos fins, que cresceu plantando cana e milho no sítio do pai. Poxa, leio uma notícia dessa e quase lacrimejo de emoção. Vejam, em União dos Palmares – AL, uma senhora quase centenária, ordeira, cristã, aconselhadora de jovens rebeldes morreu e poucos sabem de sua morte, enquanto nacionalmente a mídia exalta um playboy e o expõe como exemplo de humildade e bom proceder por supostamente, na infância, ter plantado cana e milho nas terras do pai.
É o diabo! “O mundo não é mais o mesmo”, conforme me garantiu um bêbado não identificado que encontrei dia desses não identificado num cruzamento identificado e que veio me pedir um conselho muito doido. Agora não sei qual dos dois poderia classificar como errático: se o conselho ou bêbado mesmo. O simpático ébrio gostaria de que eu, que, segundo sua convicção, estava aparentemente sóbrio, lhe revelasse qual era a esquina da direita. O bêbado estava bêbado demais e, por tal singularidade, como me disse em intervalos longos e silábicos, não conseguia por si e livre escolha diferenciar a esquina da esquerda da esquina da direita. Estava deslocado no tempo e no espaço, "aéreo", como se diz na gíria etílica, e para encontrar o caminho de casa, necessitava de minha colaboração. Um caso grave de embriaguez era aquele, pois está visto que não é todo dia que um bêbado esquecer o caminho de casa.
É: “O mundo não é mais o mesmo”, como bem conhece a rainha Elizabeth. Como quase todos sabemos, a mídia noticiou diuturna, noturna e amplamente, a majestade recebeu a vacina contra a covid-19. Está imune ao coronavírus e a muitos outros vírus que acometem o homem comum, a exemplo do vírus da fome, do vírus da violência doméstica, do vírus do desemprego. Apesar de ser rainha, tenho-lhe grande simpatia. Minha admiração poderia ser maior, se ela abandonasse o trono e fosse viver feito gente de carne e ossos, ossos principalmente. Mas essa é uma notícia que não terei tão cedo, haja vista a idade de sua majestade... Já teve tempo suficiente para pensar a respeito, e se ainda não abdicou da majestade, pouco provável que o fará daqui para a frente.
O jeito é me contentar com outras notícias igualmente relevantes. A mais importante delas diz respeito ao fim do “Domingão do Faustão”. É o assunto do momento. A notícia que derrubou o dólar, entubou a covid-19, deixou estupefata a rainha Elizabeth, inclusive.
O possível fim do "Domingão do Faustão" é a notícia da semana.
Após mais de trinta anos, e mais magro, o Faustão finalmente vai se aposentar. Milhões de brasileiros, segundo pesquisas IBOFES/IBOTRETA, desaprovaram essa notícia e há relatos de que um parte desse contingente planeja realizar protestos na porta da Globo, a fim de dissuadir a emissora e o apresentador de abandonarem o programa dominical e permanecerem enriquecendo nossos pobres domingos com bulhutas e vídeos cassetadas.
Tanto é que, há pouco, na esquina da rua onde moro houve uma briga braçal, inclusive, e cujo motivo foi justamente o fim do "Domingão do Faustão". Três de meus vizinhos entraram em contradição enorme e, diante de acalorados ânimos, cidadão não identificado chamou a polícia para evitar o pior. Isto é, que algum dos combatentes fossem ferido com gravidade. Após breve demora, a lei chegou rapidamente, realizou as primeiras diligências secretas e chegou à conclusão de que o fim do “Domingão do Faustão” foi o estopim deflagrador da briga braçal.
Havia três vizinhos envolvidos no conflito, como disse, mas faltou-me especificar as bandeiras que hasteavam. Pois bem: um defendia, com volumosos palavrões e caretas, o encerramento do "Domingão"; os outros dois, visível e ardentemente, se opunham, lançando mão de socos e ponta pés contra o adversário. Daí, naturalmente, levou a pior o opositor, que, em menor número e insatisfeito, foi estigmatizado e conduzido a socorros medicamentosos, em razão de ferimentos leves, perpetrados pelos situacionistas.
É, parece que o mundo não é mesmo mais o mesmo. Ô loco, meu.