AMOR DE DANAÇÃO

O amor de esposa é o amor palpável, o exercício do amar de todos os dias. Amor que se desgasta com o vento e os humores de café, almoço e janta. A mulher presente em cama e mesa é a heroína que enfrenta o desafio deste ácido conjunto de vestir a felicidade, para que esta seja palpável, visível nos rostos, nos atos e gestos.

Este quase-poema antecipa-se ao café da manhã e tem a letargia de quem levanta da cama sem abrir completamente os olhos. Tem a preguiça das coisas impalpáveis, a do corpo cansado de fazer o poema cotidiano e procura encontrar belezas nos raios de sol que entram pela janela descuidada de sombras.

Levantei com o inusitado desejo de soletrar a poesia travestida de rotinas e contas a pagar. A caderneta do armazém da esquina não cabe em si de anotações e de dívidas atrasadas. O pneu do carro está murcho e por certo o corpo lasso, não desperto, vai se banhar de suor nos próximos minutos. Cutuco a barba de dois dias e descubro que faltou água agorinha. Tomar o café frio porque faltou gás? Mastigar o biscoito aventado?

Nem sempre o encanto de estar vivo fala a linguagem aparentemente doce em que trafega o amar. É necessário ter reservas de paciência fora do corpo. Bem, quase fora, porque os neurônios ainda são plausível ligação para explicar a falta de dinheiro, e que filhos e netos sejam reais motivos para entupir de esperanças o exercício de viver.

Quero uma prosa ou um verso como este que desce à ponta da caneta: descomprometido e ágil. Alguma coisa como um quiabo vivo entre as panelas, à beira do mergulho no fogo. Sinto a emoção que vaza sem nenhum atalho de intelectualidade, enquanto no pátio o cachorro ladra pedindo a sua ração da manhã.

Olho para o lado e me espera o pedreiro, colher na mão, cimento nas unhas. Faz tempo que ele saiu de casa. Chegou às seis, justo quando pensava ir pra cama, enrolado com os meus grilos da criação.

Fico pensando que a rotina de um sobre o outro é o desafio maior no casamento que se encaminha para a estabilidade, tal o que ocorre no serviço público, onde um não se livra mais do outro.

A vontade de fazer uma oração aumenta e sela a ânsia de dizer ao Pai que o amor está vivo e se manifesta em coisas tão diminutas aos olhos de olhares pequenos. É vital esta artéria que espirra como uma femural entupida.

Agora já estou quase lúcido. Aquela lucidez de abrir os olhos e sentir o corpo atendendo ao comando do cérebro.

Bem, é hora de um homem de mais de sessenta anos (e que ainda escreve poesia!) fazer o teste de glicemia: furar o dedinho e esperar que as horas de descanso noturno tenham consumido o excesso de açúcar do dia anterior e ficar a desejar que o resultado do teste apresente “Dona Diabetes” sem o humor da fúria não consumida.

É necessário que a dose de açúcar seja a mais doce e suportável para se viver bem e em alegria aos olhos dos outros...

São dez horas da manhã. Ergo-me de um salto da cadeira que suporta o corpo lasso e, reverentemente, digo ao luminoso dia que invade a porta entreaberta:

— Bom dia, vida! Como vai a sua rotina?

E, recomposto, vou tomar o café.

– Do livro CONFESSIONÁRIO – Diálogos entre a Prosa e a Poesia, 2006 / 2007.

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/717116