DO FIM DUM MUNDO BUGADO

Desde que eu nasci ouço dizer num tal de "fim do mundo".

Confesso que , no decorrer do tempo , sempre esperei por ele.

Primeiramente era só uma fantasia de criança, algo alimentado pela teologia, muitas vezes na leitura das Homilias; e também pelas falas adultas, das sustentadas por meu pai (que foi Mariano!), mãe, avós, tios, madrinhas que, frente à minha curiosidade permanente pelo assunto, faziam questão de me garantir a certeza dum tal Juízo Final.

Eu achava aquilo super justo...mesmo quando ainda acreditava na Justiça dos Homens.

Não muito tarde eu entenderia que a mensagem subliminar das explicações seria traduzida pelo dito popular bem conhecido hoje em dia, o que ensina que "boas meninas iriam para o céu...e as más, ara, iriam para qualquer lugar".

Optei em ir para o céu e fiquei esperando por ele muito mais do que pelo fim do mundo.

Nenhum dos dois chegavam...

Em contato precoce com a Sagrada Escritura eu me assustava com as figuras dos cavaleiros do APOCALIPSE, com suas figurações de tão difíceis entendimentos para uma criança, dificuldade que segue até hoje.

O tempo passava e o mundo continuava...existindo.

Na passagem para o século vinte e um, já bem madura, se falava no tal Bug do milênio, um termo da informática que previa que o fim do mundo, ao menos daquele meu, poderia começar pela paralisação do tudo que dependesse dos computadores.

O mundo então estaria literalmente bichado!

Havia o medo das viagens de avião naquele Reveillon da passagem de século.

Eu acreditei...mais uma vez.

Jurei que jamais montaria num bicho daquele na tal fatídica data final sob pena de que o mundo terminasse todo "bugado" justo lá em cima, nas imediações dos céus.

Se bem que teria a parte boa; nas tão difíceis logísticas para o tudo de hoje em dia, até para se partir dum fim de mundo para um outro, seria só dar um pulinho dali para um céu maior, cantando e já torcendo para que a canção do Nelson Cavaquinho reacendesse um sol para um novo mundo bem novinho em folha. E sem "bugs" traumáticos de passagem!

Dada aquela hora histórica de entrada no novo século, lá estava eu dentro dum voo aguardando pelo tão esperado evento Bugado ser anunciado pelo comandante da aeronave.

Nada aconteceu. O bicho voou direitinho...com instrumentos sincronizados dum mundo de vento em popa!

Lá fui eu, paradoxalmente, do novo para o velho mundo.

Mais tarde fiquei aguardando as profecias do calendário Maia.

E Nada!

Mais um tempinho por mim decorrido e hoje consigo ter uma clarividência do fim do mundo.

Realmente ele existe...é como um "bug processual".

Sim, e não seria uma data...seria um duro processo de transformação.

Uma progressiva e acelerada desumanização da Humanidade...ancorada na virtualidade das telas.

Daí veio a atual Pandemia do novo Coronavírus que super acelerou a já "bugação" total em andamento e que biologicamente já contaminou qualquer possibilidade de humanismo real.

É proibido ser ser humano, para se continuar vivo num mundo "bugado".

Um bug de corpos e almas. Um bug dos sorrisos abafados pelas máscaras explicitas nas faces irreconhecíveis.

Sim... o Bug maior seria a nova Torre de Babel da modernidade, acessível ao teclado dos computadores dos Homens e que nos passariam a ser como órgãos dos nossos corpos e extensões das nossas mentes tecnologicamente infectadas.

Nesse fim de mundo , em fração de segundos , os até então ditos seres humanos, saberiam como se degladiar pelo sistema binário disponível à destreza das nossas digitais .

O mundo perderia sua realidade humanística tangível para uma surrealidade humanóide ,que seria sucedida pela robótica, algo já em curso acelerado entre nós.

Seres ditos humanos perderiam a razão, a lógica e a sensatez.

Seriam manipulados por robôs e comandados primeiramente pelas narrativas e suas retóricas que visariam os poderes vazios, desconstrutivos.

O fim do mundo "bugado" seria dividido em dois para facilitar as contendas destrutivas.

O planeta em neve degelada seria consumido pelo fogo de todas as corrupções.

Os preconceitos seriam velados pelas epidêmicas hipocrisias travestidas de bondades.

Antigos humanos, ora caricatos sob todos os aspectos vitais, seriam debochados e desmotivados na construção de suas famílias.

Os músculos hipertrofiados seriam a força das relações descaracterizadas de existência válida.

As virtudes seriam escravizadas.

A Ciência perderia sua credibilidade.

O amor seria apenas uma molécula amorfa produzida nos laboratórios.

As amizades seriam a figuração dos interesses.

O objetivo financeiro sobrepujaria o real valor de qualquer vida...e compraria quase tudo e quase todos...somente os "fracos" se negariam ao comércio dos próprios ossos.

As notícias seriam fabricadas.

A vaidade assumiria seu pedestal patético e a arrogância derrotaria a si mesma como se zombasse do próprio destino já perdido.

A violência global e digital seria como moeda de poder.

Assim se delinearia um cenário "bugado" mais rápido e poderoso que bomba atômica.

Era sabido. E foi assim que, de repente, enxerguei todo o contexto.

Haveria sim o fim daquele antigo mundo que conheci e o próximo nunca mais seria igual ao que se viu.

Partiríamos em comboios , todos doutos de vazios escorridos aos ralos, vencidos pelo efêmero do que não importa, despidos de humanidade e cegos pela tecnologia, todos rumo ao inexorável matadouro de nós mesmos...

Um fim de mundo no qual existência alguma jamais esperaria ser desligada...e para o qual não existiria vacinas com competência imunogênica de salvação.

Um fim de mundo onde todo oxigênio seria desligado e sem perspectivas de céu.