MEMÓRIAS...
A cozinha.
Ah! A cozinha da Nona tinha uns aromas próprios inesquecíveis.
O cheiro do bife à milanesa; o de carne de panela, que a Nona fazia cozinhando um belo pedaço de “lagarto” entrouxado com cenouras e azeitonas num "brodo" bem temperado com cebola, alho e salsão, tudo colocado para cozinhar em água fria para ficar um caldo bem nutritivo e que ela aproveitava para fazer a sopa de todo o jantar; depois de cozida, ela passava a carne em gordura bem quente, só para dourar bem, por fora, ficando como um rosbife super cozido por dentro, uma delícia!
Os pimentões recheados com arroz e batatas cozidos e carne moída refogada com cheiros verdes e orégano, que ela tampava com um pedaço de pão amanhecido, para não escapar o recheio, e que depois de fritos os pimentões, ficava fritinho e impregnado com o sabor de tudo um pouco!
E o cheirinho de café que ela coava todo dia depois do almoço. Era uma aroma que nunca mais senti em café nenhum. Ela e o tio Américo, almoçavam mais tarde do que nós, porque meu pai voltava do almoço às 13h e essa era a hora que o meu tio chegava para almoçar. Então eu ia à casa da Nona, com o pretexto de ajudá-la a lavar a louça, só para tomar o delicioso cafezinho.
Algumas vezes eu e minha prima Suzana marcávamos encontro na casa da Nona depois do almoço. Ficávamos ali sentadinhas cada uma numa cadeira, como quem não quisesse nada, aguardando o momento da “cerimônia do café”. Sim, porque era todo um ritual: Primeiro a água cristalina escoando da torneirinha de um depósito de água filtrada que ficava sobre a pia da cozinha e que naquela hora do dia, dependendo da estação do ano, recebia um facho de luz do sol que entrava pelo vitro, vindo a refletir bem sobre o local onde o canecão de alumínio muito brilhante, recebia a agua retirada do poço que as casas da época tinham invariavelmente em seus quintais, e era armazenada ali. Os raios do sol provocavam, com o movimento da água, reflexos de diamantes! Aquela água já era especial: continha gotas de Sol.
Depois o ruído metralhado do acendedor provocando a chama azulzinha do gás... Então chegava o momento da alquimia:
De dentro de uma lata amarela, que contivera havia muuuuito tempo, biscoitos Aymoré (com ípsilon) e em cuja tampa, o desenho de um Índio de franja no cabelo e duas penas atravessando a cartilagem do nariz, a Nona retirava um saquinho de papel com pó de café, meticulosamente dobrado na abertura e preso com um prendedor de roupas, para não deixar escapar o aroma da Rubiácea torrada “no ponto certo”, e contava duas colheradas “e um chorinho”, do pó castanho de aroma envolvente, que era colocado no coador de pano equilibrado sobre o “mancebo” de alumínio,em cuja base ficava solenemente, o bule de ferro esmaltado verde claro, com três pequenas florzinhas rosadas pintadas na lateral. Sua tampinha presa com uma dobradiça ficava aguardando o momento de executar sua função de impedir que o café esfriasse, dobrada para fora, sobre a asa pintada de preto, como se fosse o gorro da batina de um padre Capuchinho.
A água fervendo era então despejada cuidadosamente “bem no meiínho” do coador que porejava o líquido fumegante e perfumado e ia caindo no bule vazio fazendo um barulhinho : “...coooóóóóóóóóóó.......” ficando mais grave a medida em que este se enchia.
Aí chegava a hora de servir.
O café era adoçado no próprio bule, e o “... rééco-rééco”... da colher misturando o açúcar era mais um dos sons da casa da Nona.
Ao pegarmos o açucareiro ou guardarmos as louças, minha prima e eu podíamos observar o guarda-louça aberto despudoradamente, exibindo suas relíquias que tanta curiosidade nos causava, pois sempre estava fechado. Ali ficavam empilhadas as “louças da Nona”, que só eram exibidas em ocasiões de reuniões da família, o que ultimamente não era tão frequente assim. Por trás de suas portas, havia uma coleção de peças remanescentes do que foram outrora jogos completos de jantar, chá e café. Eram tigelinhas, pires, pratos, travessas, galheteiros em louça barata, muitas delas lascadas ou faltando uma asa, cada peça revelando sua decoração original da época: flores, paisagens azuis, isso, sem contar os copos de vidro verde, pintados com círculos vermelhos, amarelos e vinho, com uma asa de vidro (tipo caneca) e bojudo na parte inferior, um charme!
Saindo do encantamento do guarda-louça, caíamos no fascínio do guarda-comidas. Ao abrir as portinhas de vidro com cortininhas vermelhas de bolinhas brancas, descobriam-se outros tesouros:
O açucareiro de alumínio com “suas duas mãos na cintura” e sua colher de alpaca redonda com o cabo frisado, como se fosse uma pequena concha de servir sopa; um vidrinho vazio em forma de colmeia, com uma pequena rolha de cortiça, recortada num “V” e com um canudinho para entrar o ar enquanto era servido o vinagre feito em casa, com bom vinho tinto e mosto, religiosamente cultivado num copo, e alimentado por colheradas de vinho que a Nona colocava semanalmente para “não secar”; o depósito para queijo ralado, em louça creme pintado com rosas azuis, em seu suporte de metal cuja tampa era erguida por um gracioso movimento; o paliteiro em alpaca era um “cochinho” sobre 4 pés de leão, todo trabalhado com rosas em relevo entrelaçadas, e a tampinha, com uma rosinha como puxador. Numa das extremidades do cochinho, uma garça se movia como a querer pescar algum peixe com seu bico longo terminado por um “garfinho” de duas pontas, que literalmente pescava o palito, que vinha até as mãos de quem fosse usá-lo, sem contato com os demais palitos -muito higiênico- os palitos “Marquezinhos”, feitos em pinho de Riga, segundo o fabricante português, tinham uma ponta fina e outra achatada, que fazias as vezes de fio dental. Mas havia muito mais objetos fascinantes naquele pequeno armário de madeira escura: Além do bule esmaltado em ágata verde com sua tampinha levadiça, as minúsculas colherinhas de mexer a “chiquerinha” de café, como dizia a Nona, e eram umas gracinhas.
As xícaras então, três ou quatro, de diversos jogos, mas cada qual exibindo sua decoração de porcelana “Real”. O cheirinho que saía do saquinho de tecido xadrezinho, com a palavra PÃO bordada em ponto de cruz e que guardava o “filão suíço” comprado pela manhã na venda da esquina, e que a Nona comia mergulhando pequenos pedaços no vinho tinto ou no café escaldante...
E o porta-panelas ? Poderia haver algo mais criativo? Era um tripé de ferro batido, esmaltado de branco, formado por umas cinco ou seis plataformas redondas, seguras pelos três ferros do tripé e que iam diminuindo de tamanho de baixo para cima, sendo que a mais alta teria uns 20 cm. de diâmetro e era nela que ficava guardado o famoso bule, com uma pequena rolha no bico arrogante, para evitar que o precioso líquido esfriasse até ser servido a tão alta temperatura, que parecia que iria derreter as xícaras. Na altura de cada plataforma, haviam três ganchinhos para que as caçarolas de alumínio com cabos de madeira fossem devidamente dependuradas. A grande pia de mármore branco com laivos acinzentados, ocupava quase que toda a parede do fundo da cozinha e nela ficava, sobre a cuba da pia, uma caixinha de folha de flandres pintada de branco, feita pelo Nono, contendo uma resistência que ligava à medida em que uma pequena torneirinha era aberta, proporcionando água quente para lavar a louça. Eu e minha prima adorávamos sentir a água quentinha em nossas mãos mas, a Nona não deixava a gente brincar muito ali por que gastava muita energia elétrica. Para que a Nona alcançasse a pia mais confortavelmente, havia um banco de madeira com assento em couro preto, e nós duas disputávamos a lavagem dos dois pratos do almoço da Nona e do tio Américo, só para sentar no banco alto.
O relógio Cuco que meu pai trouxera da Alemanha em 1936 quando participou das Olimpíadas, com seu tic-tac monótono e sua maneira macia de marcar as horas: Cuco! Cuco! Enquanto o peso ia descendo pela correntinha negra com uma argolinha na ponta...
Imagens e aromas que jamais sairão de minhas lembranças.
A casa da Nona foi demolida em 1970 para dar lugar ao primeiro salão de um Supermercado
Com exceção do Jatobazeiro plantado por minha mãe em nosso quintal e que o dono do mercado faz questão de manter intacto até hoje, nada mais restou naqueles terrenos, das casas onde residiram por tantos anos, quase toda a família Magnani
De vez em quando, aos domingos, saio para dar uma caminhada e vou até à Praça onde vivi por 23 anos. O burburinho do trânsito e das pessoas que vêm ao mercado ou passam por ali apressadamente não me lembram em nada a calma bucólica da Praça dos anos 50, com as vacas do “seu” Bento enfiando a cabeça desavergonhadamente pelos vãos do muro baixo que cercava a frente de nossa casa, para pastar as plantas da minha mãe. Nessas ocasiões, reconheço no rosto enrugado de alguém que conheci criança, os traços de seus pais, e em nada lembrando as crianças que foram. Eu também devo estar assim, afinal já lá se vão mais de 70 anos... e parece que foi ontem...
Chego a sentir o mesmo aroma das rosas de nosso jardim, ou das goiabas vermelhas que quase desancavam a goiabeirinha mirrada e pródiga que havia em nosso quintal. E nesses momentos, chego a sentir o cheiro do café, da carne de panela, da cozinha da casa da minha Nonna...
Cléa Magnani