Ser chato
Nem sempre estamos de bom humor, e a culpa não é das estrelas. Na maioria das vezes, quando nos encontramos nesse estado pouco depurativo da alma, a culpa é do(s) chato(s) que nos rodeia(m). São esses seres “superiores”, redutos de falsa castidade, moralistas “sui generis” que nos tornam, por vezes e para além da conveniência, o cotidiano substancialmente pesaroso.
Ser ou não ser chato, não é a questão, porque a ciência já comprovou que todos, à exceção dos chatos, estamos sujeitos a chatices dos dias. O problema é “está” sempre “chato”, a incomodar a desordem natural das coisas, atividade em que os chatos são invencíveis. Chato é um caso sério, tratado com descaso pelas autoridades sanitárias e por Organizações Internacionais de Controle de Pragas. Chatos são uma chatice, e falo por mim, que me conheço chatissimamente bem.
Chato não erra, não ouve, não se arrepende. Inútil contestá-lo. Chato sempre tem razão. Quando muito admiti que se engana, porém, um engano sempre de pouca importância se comparado aos enganos que acometem as pessoas comuns. Chato não se vê como pessoa, tampouco comum. Quase todo chato considera-se divindade, ícone, celebridade, embora todos saibam que ele é apenas mais um anônimo em meio à multidão. Chato é uma chatice, principalmente quando leva tudo para o lado pessoal, como acontece em 101% das vezes em que um chato é confrontado. Nesses casos é recomendável a presença da polícia para salvaguardar a individualidade coletiva e a desordem social.
Chato é mistura de destarte com outrossim, resultante em quiça talvez. Quase todos nós conhecemos um desses sujeitos castos que nos querem incutir mais uma lição, e "de grátis", de álgebra, de etiqueta, de moral, dos ensinamentos do Senhor, como que goela abaixo, sem pedi permissão, sem preliminares, despidos de bom senso e sensatez. Quase todos nós conhecemos um desses donos da razão, “cutucadores profissionais”, fura-fila, enciclopédia ambulante. Difícil evitá-los. Estão em quase todos os lugares. Mais populosos que formigas, é comum encontrá-los na família, na sala de aula, nas festas públicas e privadas, na mesa do nosso frequentado bar, na fila do pão. Estão aí, aqui, acolá, aos montes. Quase todos nós os conhecemos, e eles nem desconfiam de que são uns chatos.
Esses dias, na fila do pão, fui inquirido por um desses estraga prazeres. Ele se aproximou e veio me perguntar as horas. Pensei comigo mesmo: “É de admirar que ainda existam esses tipos de chatos.” Logo a mim, que visivelmente estava sem relógio no pulso, o cara achou de perguntar as horas. “Só pode ser adivinho...”, continuei em solilóquio. Pois não é que, embora não estivesse com relógio no pulso, tinha-o no visor do celular, que estava no interior do bolso de minha bermuda, escondidinho. “Esses chatos leem mente?”, perguntei a mim mesmo, abismado. Tirei o celular do bolso, liguei o visor com pesar, informei-lhe as horas; ele agradeceu-me e, por fim, me perguntou se eu tenho irmão gêmeo.
Tentei me desvencilhar, mas chato é por natureza insistente, de modo que não lhe basta respostas breves, como sim ou não; é preciso, apesar de desconhecer a filosofia de Trimagasi, inteirar-se dos detalhes. Respondi-lhe que sim, que tenho uma cópia no mundo, e ele interessou-se por essa especificidade; pediu-me mais detalhes do caso. Foi então que eu, como suspeitava desde o princípio, descobri que ele não queria saber apenas as horas, pretendia exercer a chatice nossa de todos os dias. Então eu lhe pedi solenemente que me esperasse brevemente, que eu iria ali na esquina e já voltava. Penso que, a esta hora, ele já não me espera.