O homem que tocava piano para Hitler


Reviso os originais da tradução brasileira de Hitler's Piano Player, de Peter Conradi. Mais um livro sobre Adolf Hitler, cuja bibliografia passiva nunca deixou de crescer de 1945 para cá, com ótimo retorno financeiro para as editoras.

Ainda é cedo para arriscar um bom palpite, mas já dá para perceber o caminho que o autor, na esteira de tantos outros, resolveu tomar: expor ao ridículo, embora não de maneira tão ostensiva, os anos de preparação política do líder nazista. Mostra, por exemplo, como foi extenuante fazer o homenzinho aprender a ter bons modos junto a famílias de corte aristocrático, onde suas mancadas divertiam anfitriões e convidados.

Uma noite, servindo-lhe um vinho da mais alta qualidade, caríssimo, o dono da casa viu quando Hitler, afastando-se um pouco para o lado, pegou uma colher de sopa e batizou a bebida com uma bela porção de açúcar, esculhambando toda uma tradição de requinte entre os enólogos.

Já as mulheres de grana e pedigree adoravam o tio Adolf e acreditavam piamente que ele tiraria a Alemanha do buraco, depois do sensacional malogro da república de intelectuais engajados de Weimar. Tratavam-no como a um cabritinho desamparado e riam-se sem maldade de suas atrapalhadas tentativas de galanteá-las. Em tais ocasiões, piscavam furtivamente um olho para os maridos, os quais, em geral, como no caso de Putzi Hanfstaengl — pianista, marqueteiro e conselheiro mundano —, incentivavam-nas a não desapontar o futuro condutor de rebanhos.

Estamos ainda a alguns anos de sua conquista da Chancelaria do Reich, mas os seus olhos fulminantes já fazem um grande sucesso nacional, hipnotizando até as pedras do caminho. Quanto a isso, mesmo entre os desafetos encontra quem lhe faça a propaganda desse olhar de medusa. Com Hanfstaengl ao piano, já compõe seus discursos de cervejaria ao som de Wagner e tem os bolsos cheios de citações bíblicas, que ganham uma versão germano-megalomaníaca em sua voz cortante, pois naquele momento o peixe a ser vendido aos cidadãos alemães era, de fato, um projeto milenarista de salvação da pátria, o que ele conseguiu, ou seja, conseguiu vender o tal peixe. Como um dado suplementar, já nessa época batizava um caminhão de filhos de bacanas.

Insistamos em que ainda estou no começo do livro, em momento de grande euforia e aplicação dos nacional-socialistas rumo ao poder. De todo modo, sempre julguei que esse esforço retrospectivo, por parte de muitos autores coroados, para ridicularizar Hitler esconde, na verdade, uma certa impotência de ordem moral, se não sentimento de culpa, pela autodemissão da intelligentsia européia diante dos primeiros sinais de um quadro de horror que não conseguiram ou não quiseram prever, ou não tiveram colhão para admitir na hora certa, e pela pusilanimidade das democracias inglesa e francesa num momento em que todo o ideário anti-semita e populista dos nazistas já era de conhecimento público e que só podia passar ao largo dos trouxas. Pelo que se viu, milhões e milhões de trouxas.
 
[29.7.2006]