Treze pretendentes: enfim, vendida!
Treze pretendentes
O Zé do Vô - seus outros dois irmãos também atendem pelo mesmo apodo - é de seu clã o único remanescente. Dobrou os 85, e as barras das calças, adequando-se ao outono da existência.
Barbeiro desde os 17, o que fez na vida após a aposentadoria foi e continua sendo zelar pelo bar-variedades, que mantém no piso térreo de seu solar na pacata rua Chiquinho Teodoro em Pitangui.
Mesmo com as "brama" que se sobressaem às demais mercadorias que espalha pelas ralas prateleiras, o movimento vai de fraco a inexistente. E não é que faltem habitués crônicos à sua porta, presença que conforta. O anedotário reza que até fósforos ele vende picado. Um lote mais compacto de rolos de papel higiênico, no alto da prateleira, envolto em plástico ensombrece-se com a pátina do tempo.
Vovozim, de caribenhos olhos azuis deve ter sido um moço ajeitado na sua juventude. Seu flerte com Edi a enfeitiçou por um casamento que durou 45 anos, descontinuado com a sua partida para um andar mais acima. Um único rebento, o loiro Robson, morigerado na infãncia e adolescência caiu na vida.
A visão mais conspícua do vovozim, fora do bar - que ainda não se empenhou em rotular - é nas quebradas da cidade rumo à padaria ou o mercado. Seus passinhos cada vez mais lentos não parecem ansiá-lo. Quando abordado, compraz-se em relembrar fatos do passado com rara acuidade e,instigado, canta o Hino do Expedicionário, desde que o ouviu ao primeiro toque, assim que Eron Domingues anunciou no rádio o fim da Guerra. Aprendeu-o com tal fervor que nunca mais se separaram.
A jóia da coroa, entretanto, é a cadeira de barbeiro que trouxe para o aconchego de seu bar. Discreta, ela só é vista para quem se dobra sobre o balcão e a descobre em meio ao colossal e crescente entulho de material (in)descartável - do saco plástico a teias de aranha.
A marca da peça é Campanile, com plaquinha de metal no espaldar, dando nota de que foi comprada na rua Augusta, SP. E seu ano de fabricação é 28. O assento, originalmente de palhinha, converteu-se numa cratera, orlada de remanescentes que teimam em assegurar longevidade.
Vovozim abaixa-se e se reergue sem dificuldades para provar, com a ponta do indicador cheia de óleo, que o mecanismo hidráulico continua funcionando mesmo no abandono. E o óleo é original. Tal qual o pecado nosso de que nos livramos só na pia batismal, com água e sal e todo o ritual.
Sem afetar jactância, Vovozim diz que a digna cadeira, na qual sentaram ancestrais meus, segue sendo objeto da cobiça de muitos.
Treze deles já se declararam esperançosos de um sim. Mas vovozim não se comove, fala até em reformar o assento da companeira que não se remove. E a turma de esperançosos, no molhado chove.
Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 01/09/2016
Código do texto: T5747278
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Post scriptum: há coisa de quatro anos e meio, a situação era a supra-descrita, mas evoluiu: dia desses, na sua souplesse indescritível, Vovozim apareceu lá em casa, de máscara, a um beco e meio de distância, para saber se persistia o interesse de mana Cida, barbeira e médica, nas horas vagas, em lhe comprar a citada Campanile, remanescente gêmea com a cadeira do grande Vela, ainda na ativa, de um lote de 10, que o avô do Paulim Ferreira, comprara em São Paulo, ainda na década de 30. O estado da velha cadeira, visualmente é lastimável, na carência de reforma de assento, encosto e braços, mas o óleo que lhe assegura a elevação a pedal é de fábrica, ele garante-me e até me exibe a ponta do indicador direito, ainda viscosa-esverdeada, de sua checagem mais recente...
Cida, que era a décima quarta pretendente, refletiu um pouco e declinou, apesar dos protestos do mano Nacho, que acha o preço bastante acomodatício e negociável...o felizardo, concluiu Vovozim, do alto e ato de sua infinita paciência, que é o décimo quinto da lista, e que é barbeiro a tempo inteiro, está agora livre para adquirir o bem. Bem haja...!