“Cancelamento”

Esta era uma crônica sem título, pois, como me acontece na maioria das vezes, os títulos costumam vir depois, como sínteses daquilo que o corpo do texto diz. O que não costuma acontecer é eu colocar um título suscitado por um termo que esteja na moda, como foi o caso dessa vez. Nem é tão corriqueiro que se fale diretamente sobre o título de um texto no próprio texto, porém, prossigamos.

Antes de tudo, é imprescindível explicar o que vem a ser este termo Cancelamento, já que, provavelmente, como toda boa moda, ela logo será esquecida. Assim, para amenizar uma provável anacronia, aqui vai uma nota para os leitores de um futuro não tão distante — e para os leitores menos antenados a estas modas também, é claro.

Usando minhas próprias palavras— e esse belo clichê—, digo: o que chamam de Cancelamento é o fazer justiça com as próprias mãos, mas na internet. É o ataque à reputação de alguém, principalmente por meio de seus perfis nas redes socias. Claro, não de forma gratuita— jamais seríamos capazes disso! —, mas em nome de uma boa causa; em nome da justiça social. E esse linchamento digital pretende mesmo o assassinato da reputação e da imagem da pessoa atacada, que, obviamente, pode até não morrer, mas carregará consigo para sempre a mácula desse ataque. É como se pretendessem transformar o alvo em um pária digital, com tudo o que isso acarretar em sua vida para além das mídias..., mas já não seriamos a maioria de nós insignificantes nesses meios?

Pois bem, esta dita “nova cultura” — ou seria mesmo uma moda? —não admite erros. É um tribunal de julgamento expresso e irrevogável, que dispensa a onisciência e almeja a onipotência. Todos podem ser rápida e facilmente punidos pelas grades de uma Hashtag— Jogo da velha! —. Já não existe perdão e, portanto, a redenção. O erro é tido como um abismo sem fundo e, talvez por isso, procurem logo enterrar aquele que tropeça. E nem vamos entrar no mérito aqui, embora isso seja necessário, de discutir sobre as causas mais comuns pelas quais o Cancelamento é aplicado.

É como se o Homem tivesse perdido o direito de ser complexo. Uma sociedade que tanto brada por liberdade, que tanto ofende a Igreja— Igreja! — como repressora mordaz, que se exaspera contra a Inquisição (Católica) e se rejubila com a revolução francesa, soviética, chinesa, cubana...Ora, não percebem eles como estão agindo? Cometem os erros do que pretendia o bem e em tudo acertam naquilo que já nascera para o mal.

O Cristianismo é paradoxal, ele aceita o pecado, que é algo como o desvio de sua doutrina, mas previsto na própria doutrina. Não que um cristão, por ser cristão, deva deixar de sê-lo às vezes, porque o pecado não é deixar de ser cristão, é cometer, conscientemente, atos não cristãos. É, até certo ponto, ser Homem, dada nossa atual condição.

Até os apóstolos vacilaram, e os homens, em todas as épocas, também vacilam, mas têm sempre, enquanto vivos, a oportunidade da redenção —embora não por méritos próprios, mas falar disso já seria teologia, e disso é que eu não sei.

Nas tais doutrinas e filosofias atuais, porém, as quais se pintam de liberdade, mas cancelam o que lhes estiver fazendo frente, tudo é mais rígido. Um conversador, por exemplo, só pode ser conservador, qualquer fuga disso é abandono e traição da própria doutrina, um erro sem chance de redenção e confissão. Uma mácula eterna na imagem da pessoa que vacilou; o grande peso de uma "condenação ao degredo". O mesmo serve para os seguidores de outras correntes filosóficas, políticas, ideológicas etc.. Este parece ser o cume ainda nebuloso desta tendência: o erro será cada vez mais fatal.

E, se é desse modo, que Raskolnikóv seja cancelado então, e se rasguem as últimas páginas de Crime e Castigo. E assim, rasguem também todas as páginas em branco que existirem depois de qualquer erro que alguém, por descuido ou perversidade, inscrever na sua biografia. O erro já não pode ser perdoado!

...

Mas eu, a este Credo, não digo Amém!

David Ariru
Enviado por David Ariru em 20/01/2021
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