OS LIVROS, A ARMA E A CATARSE DE UM PROFESSOR HUMILHADO

Lúcio Alves de Barros

Na correria do dia-a-dia, tudo levava a crer que seria mais um dia de rotina. Às cinco da tarde, do centro de Belo Horizonte, desloquei-me no ônibus para a faculdade onde leciono de segunda a sexta-feira no período noturno. Em sala de aula, dever cumprido. Hora de retornar. Cansado e já pensando nas tarefas do outro dia, em meio há tantos pensamentos, eu e um amigo professor, que trabalha na mesma instituição, retornamos para a capital mineira no mesmo coletivo que nos leva rotineiramente. Olhamos no relógio e ficamos satisfeitos – era 23h:20min. Pensamos – “chegamos mais cedo e vamos poder pegar o próximo coletivo” às 23h:40min e chegar pelo menos uns 20 minutos mais cedo em casa”. A essa altura, estávamos na conhecida Avenida Amazonas, em frente ao CEFET, local conhecido e freqüentado por muitos estudantes e professores. Tudo parecia correr bem. No ponto de ônibus, era perceptível a movimentação de muitos transeuntes e outros esperando o transporte. A sensação era de normalidade em um cenário no qual se prega a segurança e a diminuição da criminalidade e da violência.

No entanto, a realidade veio mostrar que a situação é bem diferente. De uma condição objetiva de euforia por conseguir chegar 20 minutos mais cedo em casa, de repente, passamos para uma situação de horror, crueldade e muito medo. Ainda no ponto de ônibus, aguardando o coletivo 5401 (Dom Cabral – São Luiz), eu e meu amigo trocávamos conversas e debates acadêmicos. O assunto, porém, foi interrompido de forma drástica: às 23h:40m, no ponto de ônibus, um casal aparentando ter entre 22 a 25 anos, que, a princípio, estavam ali apenas à espera do coletivo – e não demonstravam ser suspeitos - transformaram-se em agentes do terror. Em questão de segundos, um revólver calibre 38, mais do que revelado pela luz de um poste que nos fazia companhia, foi apontado na direção de nossas cabeças. Fiquei perplexo e paralisado. Não sabia se de fato estava sendo vítima da violência e da criminalidade ou se não passava de um devaneio. Um sentimento de impotência apoderou-se do espírito e uma espécie de anestesia psíquica nos abateu diante dos meliantes.

Mas a ilusão logo acabou. A voz do rapaz anunciava: “Você não ta vendo, não? É um assalto, sô”. “Anda, anda, senta... senta... senta, porra”. “Vá tirando a carteira”, “Abra a bolsa”, “Cadê o celular”, “O que tem nesse bolso”, “Anda, anda....”. Frases rápidas em tom hostil, agressivo e amedrontador configuravam a cena. Rapidamente, impotentes e humilhados sentamos sem saber qual seria o desfecho do que parecia ser mais um dia de trabalho. Conforme mandou o algoz, fomos retirando tudo que nos pertencia: livros e mais livros, a carteira, o talão de cheque, o dinheiro, os trocados para o pagamento do ônibus, o celular do amigo (que foi para as mãos da mulher), cadernos, as provas de alunos, enfim a vida tal como ela nos era apresentada. O rapaz, que se manteve em pé com o revólver apontado em nossa direção revistou tudo e verificou as nossas condições objetivas e simples da vida que nos poderia ser retirada. A moça, por sua vez, fez questão de sentar do lado do amigo professor e, com muita tranqüilidade, de quem parece que já domina bem o ofício, foi pegando os nossos pertences e conferindo o que realmente poderia ter valor, afinal, agiu como qualquer boa profissional da área.

O tempo correu rapidamente, se visto do ponto cronológico: às 23h:20min. chegamos; às 23h:40min fomos assaltados e, em poucos minutos, o ato já tinha sido consumado. Em menos de cinco minutos, totalmente aterrorizados, nos restava ver a cena do casal sorridente indo tranqüilamente embora com os nossos pertences. Na ocasião ainda me veio o seguinte pensamento em relação ao que deveria estar se passando na mente perversa do casal: “É, a noite rendeu, mais dois otários facilmente nos garantiram o dia”. “Que bom. Acho que podemos ir e quem sabe encontrar mais alguns bobos por aí”.

Não fiquei pensando. Em uma ação quase automática, por ainda acreditar na eficiência das instituições brasileiras, peguei o meu celular - que não tinha sido levado pelos meliantes porque não se deram ao trabalho de revistar os livros – e fiz o que a Polícia Militar de Minas Gerais sugere: “Ligue 190”. Ingênuo... pensei: “pelo menos terei um pouco de segurança e, se possível veremos a justiça ser feita”. O jogo poderia ser virado. Quanta ilusão de um mero professor dedicado aos estudos da violência. Ao contrário do que pensava, a noite estava apenas começando. Muitas horas ainda marcariam aquele lamentável dia.

A segunda decepção – a primeira, claro, veio do assalto em perceber que ainda vivemos num mundo selvagem – veio do atendimento policial. A chamada do 190 foi frustrante. Como disse, em questão de minutos, exatamente às 23h:42min, fiz a chamada tal como apregoa a PM pela TV. Em questão de segundos, uma atendente do Copom já estava na linha para ouvir a minha reivindicação. Ela informou: “Aguarde que a viatura está à caminho”.

Fiquei mais tranqüilo. Uma sensação de um certo alívio se forjou diante da possibilidade da presença ostensiva da Polícia Militar de Belo Horizonte. Novamente seria restabelecida nossa segurança, tudo daria certo e, possivelmente, diante da rapidez em que acionei o Copom, os meliantes poderiam ser apreendidos. É assim que pensei o que poderia acontecer: uma ação rápida e eficaz da polícia que poderia resultar na prisão e punição dos recalcitrantes. Afinal, o lema é “Polícia Militar: nossa profissão, sua vida”. Diante da visão romanceada acreditei e aguardei a chegada rápida do policiamento.

Mas a realidade é outra. Como diz o vocabulário policial: “na prática as coisas são diferentes”. Isso não é novidade para um sociólogo, mas não deixa de minar a imbecil idéia da esperança que devemos nutrir em relação á vitalidade das instituições públicas que bancamos com o suor do nosso trabalho. Lamentavelmente, somente às 24h:55m, ou seja, depois de uma (01) hora e treze (13) minutos, a viatura chegou ao local do crime. Por surpresa, não era uma viatura pertencente a Área Integrada de Segurança Pública (AISP). De acordo com os policiais nós deveríamos seguir com eles para a 125ª Cia de Polícia, pois eles pertenciam e deveriam policiar ostensivamente somente a área do 5º Batalhão, e, o nosso caso era problema do 22° Batalhão da PMMG. Como não sou nenhum neófito no que diz respeito aos assuntos de polícia, não reclamei. Não estava em condições de ponderar ou “palestrar” com ninguém. Esforcei-me por compreender que o mais importante era a estatística da polícia, haja vista que na área do 22º Batalhão ainda não havia ocorrido nenhum “Roubo a Mão armada consumado (assalto) a transeunte” (Conforme consta o nosso Boletim de Ocorrência número CIAD/P-2006-0899811).

Na viatura, os três policiais foram muito gentis e parecem ter compreendido os acontecimentos daquela singela situação. Assim nos disse: “Nós vamos levar vocês para a 125ª Companhia, porque o nosso Batalhão não cobre esta área”. No caminho para a companhia, tomado pela emoção pensei, “ainda bem que não sofremos nenhuma agressão, pois se tivesse sido um assalto com violência física e possibilidade de morte o desfecho poderia ter sido muito pior”. Daí ser importante não reagir em tais casos. Os minutos podem significar uma vida, pois os meliantes não nos auxiliariam em caso de disparo, tampouco os transeuntes e as pessoas que também aguardavam os coletivos e, pela demora, era impossível cobrar da polícia qualquer ação, afinal ela chegaria somente depois de nossa morte. O boletim de ocorrência - de nossa parte - poderia ser cobrado nesse caso somente no campo espiritual. A vida é isso mesmo, pouca coisa quando se transforma em uma série de estatísticas sempre estampadas no jornal. Mas deixei isso de lado e até achei que os policiais estavam gentilmente me prestando um grande favor, ou seja, não era a área de atuação deles e ainda nos dariam uma calorosa carona até a 125ª Companhia. Quanto sentimento humanitário de uma polícia comunitária e mais que bi-secular.

Diante do “crime de pequeno potencial ofensivo”, tenho que agradecer à PM, pois em segundos, estávamos sendo descarregados na 125ª Companhia. Digo descarregados, porque eles tinham que retornar para o policiamento viário e, possivelmente socorrer, a posteriori, outras vítimas da violência urbana. O rádio não parava e senti um perverso sentimento: “pelo menos não sou o único”. A noite ainda se estendeu... Era hora de contar em detalhes o acontecido para viabilizar o registro do popular BO (repito, número CIAD/P-2006-0899811). Não sei se estava ansioso, ou se o tempo parecia não passar. O policial demorou mais do que previsto para preencher o novo formulário REDS (nome, pai, endereço, profissão, características do meliante, como foi o caso, qual era a arma, se eu tinha a certeza se era um 38 e coisas do gênero. Cheguei mesmo a pedir para desenhar a arma para ele, haja vista que fui cabo do exército brasileiro e conheço muito bem uma arma). Ao escrever o boletim, percebi que o policial demorava um pouco para formular o texto do ocorrido, afinal como traduzir em poucas linhas mais um episódio violento da noite de Belo Horizonte.

Novamente fiz algumas conjecturas: deve ser a rotina. Médicos, enfermeiras e técnicos de laboratórios se acostumam a atender pacientes que estão morrendo e, aparentemente, não demonstram qualquer sentimento, professores se deparam a cada dia com tragédias individuais dos alunos e, aparentemente, não confundem os sentimentos. Coveiros enterram e percebem o sentimento dos enlutados e, aparentemente, não demonstram sentimentos. Não há compaixão na sociedade da famosa “pós-modernidade”, a fila continua, e tal como grita a prostituta no bordel: “Próximo!”. O mesmo penso acontecer com boa parte dos policiais que se acostumaram a atender os cidadãos que sofrem violência, eles também não podem revelar os sentimentos. São tantos os casos, alguns até piores do que o nosso que o melhor talvez seria ficar calado, haja vista que a nossa angústia – que parecia gritante – para os policiais era mais uma etapa da rotina de uma noite de trabalho. O nosso pânico talvez fosse a falsa idéia de que somos preparados para lidar com a vida moderna e urbana. Há quanto tempo venho estudando o cotidiano policial e ainda não havia me adaptado, são várias as histórias que escuto e há muito venho acompanhando as pesquisas de vitimização feitas em Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. A coisa está muito mais feia do que se pensa. Nada como estar como vítima para ver a realidade dos fatos. Não posso negar o meu sentimento de revolta, humilhação e impotência. É difícil não pensar nesses momentos em uma vida inteira baseada em princípios éticos e no respeito às leis e às instituições, e em poucos segundos ver tudo isso jogado no lixo, porque a violência é rotineira, porque a ação das instituições é lenta e porque temos que nos acostumar. Pensei até em me acomodar e me recolher a minha insignificância – sou apenas mais um cidadão que sofri as conseqüências da criminalidade. Mas é justamente por ser cidadão é que tenho que reclamar. A cidadania é conquista e não poderia deixar de relatar o acontecido e, ao mesmo tempo, desabafar os sentimentos (inclusive os de raiva, revolta e vingança) que perpassaram minha alma em tais acontecimentos.

Bom, não tenho o interesse de “prender” mais o leitor. Gostaria de ser mais objetivo nas palavras, tal como é a polícia nos casos de emergência. O fato é que saímos da 125ª Companhia às 02h:57m do dia 26 de setembro. Sem dinheiro, mendigamos aos policiais para que nos conduzisse a um ponto de táxi. Assim, o gentil soldado procedeu. De tudo isso, vale salientar que a dupla, ou pelo menos a mulher é conhecida há muito tempo pelos policiais. O homem é de cor branca, cabelos claros, mais ou menos 1,68 (a minha altura) e portava um boné branco e blusa de frio cinza. A mulher, de acordo com o policial, uma garota que faz programa na região, seguia a mesma descrição oferecida por ele: é negra, cabelos crespos e grandes, obesa, “forte” e vestia uma blusa (uma jaqueta azul) e mini-saia jeans. Ainda carregava uma mochila desbotada, na qual com tranqüilidade colocou o nosso pouco dinheiro, o talão de cheque do meu amigo e o seu celular. A dupla parece desconhecer a teoria das oportunidades e da escolha racional (a questão parece cômica – nunca se sabe como reagem as vítimas), pois os custos poderiam ser muito maiores que os benefícios. Tudo indica que eu e o meu amigo professor, fomos agraciados pelo que Maquiavel chamou de fortuna. A mulher estava muito calma, afinal ela anda cumprindo o seu ofício muito bem na região. Mas o rapaz estava visivelmente alterado, apontava a arma para as nossas cabeças e nos empurrava com ela. Minha atenção ficou constantemente dividida entre a arma e o descontrole do recalcitrante. Em tais circunstâncias, cumpre somente o agradecimento a Deus, pois às 3h:10min chegamos em casa e, ao contrário de muitos, ainda ficamos vivos para contar esse singelo acontecimento. Como sei que para muitas pessoas é somente mais um caso. Fica somente o registro.

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Lúcio Alves de Barros: é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), mestre em sociologia e doutor em Ciências Humanas pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). É professor da Faculdade ASA de Brumadinho. Organizador do livro Polícia em Movimento. Belo Horizonte: ASPRA, 2006. Autor da obra Fordismo: origens e metamorfoses. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2004 e co-autor do livro de poesias Das emoções frágeis e efêmeras. Belo Horizonte: Ed. ASA, 2006.