Aprendendo algo durante a pandemia
"Aproveite o confinamento para aprender algo novo, ou refinar alguma habilidade inexplorada."
Balela! Não eu!
Já tenho uma considerável parcela de assuntos procrastinados que uma pandemia só seria insuficiente para resolver.
Falar assim dá a impressão que sou super ativo, cheio de ideias, projetos, atividades e compromissos... mas é o contrário.
As tarefas se acumulam justamente porque sou preguiçoso, acomodado e relapso.
Fato é que, desde que entramos nesse período de isolamento forçado, não vi nenhuma sobra de tempo. O tempo ocupado com as atividades suspensas foram prontamente substituídas por outras equivalentes, ou piores.
É como escavar o fundo do oceano. O buraco deixado pela terra tirada é imediatamente preenchido pela água. Elas por elas.
Isso torna-se evidente quando você se vê obrigado a assumir certas tarefas amenas que antes eram insípidamente terceirizadas.
Uma delas era cortar cabelo.
Digamos que não sou um frequentador assíduo, mas em intervalos oportunos, sempre ia lá na bardearia do seu Sérgio deixar minha singela contribuição de 20 reais para o mundo fashion.
Outros tempos.
Como todo mundo, pensei que era um problema momentâneo, e com um pouco de paciência, logo as coisas se acomodaríam e normalizariam-se sozinhas. Assim, ignorava os importunos e tentava não ater-se muito nisso.
Muito insensível para com os milhares no mundo que são afligidos pela evasão capilar, mas o excesso de cabelo também é um baita incômodo.
Com o campo de visão reduzido em mais de 70% por franjas arredias e frequentemente comendo cabelo involuntariamente, já está mais que na hora de dar um basta na medrança selvagem dessas madeixas.
Assim, opções e contrapontos foram estudados.
Assumir a contaminação e pedir para alguém cortar? Começar a usar gel ou laquê? Grampos de cabelo? Uma bandana ou tiara talvez? Esperar crescer mais um pouco até conseguir prender com um elástico? Usar óculos incomodava menos que a franja no olho?
Estava esgotando as possibilidades, e por fim, a auto decepação capilar pareceu a melhor solução.
O bom de uma crise generalizada é que ela pressupõe certa trégua social. Como ela afeta a todos, eventuais imperfeições estéticas podem ser facilmente compreendidas e relevadas.
Plano traçado, 'bóra lá cortar o próprio cabelo! U-hu!
Com o orgulho de ser um bom autodidata esnobe, fui lá procurar dicas de como fazer um parto capilar humanitário.
Achei um vídeo de uma coreana aleatória que tentava demonstrar sua arte. Não entendia uma palavra e tão pouco ela parecia ter boa habilidade na tesoura, mas parei pelo cativante e generoso decote da moçoila. Tenho licença de tiozão, obrigado.
Certo, grande perda de tempo (dependendo da perspectiva).
Afinal, que dificuldade deve ser, manipular um objeto afiado na cabeça com base numa perspectiva invertida de espelho?
Bom, já nas primeiras tesouradas me arrependi de algumas coisas. Definitivamente não tinha as condições ideais, porém, ao mesmo tempo, era impensável ter que recomeçar tudo novamente nalgum outro dia. Isso não iria acontecer.
Estava determinado.
E quer saber? Quero ver alguém fazer melhor com uma bancada improvisada, precariamente apoiada numa escada, porque, por alguma razão, no apartamento inteiro, só tenho um espelho decente, e ele está definitivamente preso à parede do banheiro, sem qualquer possibilidade de remoção (história para outra ocasião).
Tudo isso fora a tesoura "cega", por causa do fio e também porque erra fácil o alvo.
Enfim, apesar de muita coisa não sair exatamente como planejado, o resultado não foi lá das piores.
Acho que fiquei até parecendo aquele artista holandês famoso...
Peraí. Falando nisso, sobre a razão dele ter feito aquilo, será que não foi como no meu caso aqui? Duvido que algum especialista considerou a hipótese de que ele também tenha simplesmente feito asnice, motivado a adquirir algum skill estúpido durante uma pandemia.
Como era mesmo o nome dele?
Ah, não importa. Só sei que ter forrado todo o chão foi outro positivo. Altamente recomendável. Sangue por todo lado.
Quem diria que a tal "protuberância cartilaginosa vestibulococlear", além do trabalho de segurar a haste dos óculos, sangra e dói como qualquer outro órgão mais nobre?
Mas, enfim, o negócio agora é usar o isolamento social como pretexto, e se esconder por algum tempo até que as coisas se normalizem.
Ruim que, nesse meio tempo, o cabelo já vai crescer de novo. Espero que a orelha cresça também.
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jan-2021