Criador de crônicas
Passeava pela inconsciência das tardes criando crônicas. Adotou em seu coração a pequena cidade de interior urbano para viver dessa contemplação exclusiva. Passou por ali como caixeiro viajante sem compreender em si mesmo que jamais retornaria. Sua passagem de volta restava no armário entre papéis avulsos. Morava em casa de aluguel. Quando percebeu já estava amigo daquela cidade nova e estranha. Vivia na casa vazia onde a nostalgia era branca e o silêncio colorido pela passagem dos anos. Nela se tornou um criador de crônicas.
O vizinho lhe contara sobre o antigo morador que trabalhara num circo pobre. Por razões desconhecidas o palhaço Turlupin partiu sem adeus, como no sumiço da crônica, deixando os pertences de ofício: algumas bolas coloridas, argolas, roupas largas, sapatos enormes, apitos e a famosa corneta que bastava assoprar para expelir água amarela da cor do ouro. A soma de todos os pertences cabiam em três caixas que agregavam no tempo força irresistível. De fato: passaram-se dois meses e o dono do circo retornou vestido com o luto na alma. A segunda esposa havia falecido num acidente de carro. As caixas foram-lhe devolvidas em perfeito estado.
Havia muita crônica nos detalhes desse passado. Detalhes que ele seguia recolhendo por onde andava. No quiosque ou no táxi. No armazém de secos & molhados ou na barbearia do barbeiro louco. Decerto um menino lhe assaltara quando furtou o nariz de borracha vermelho de Turlupin das caixas em sua curta narrativa. Nesse dia decidiu que desceria até a escuridão da garagem e espiaria os objetos do morador. Sem que uma dor aguda lhe atacasse o peito transformou palavras em ações. Sentado no chão gelado começou a vasculhar o ventre das caixas. Abria com cuidado cada uma delas para vencer o tédio hermético da noite. A noite feia e fria. Vestida de vento marinho e lacustre uivando entre o mar e a lagoa. Estava errado, muito errado. Jamais havia furtado e muito menos ferramenta de trabalho. Passaria por ladrão. Considerou o fato de que o dono não notaria a ausência do nariz cênico de plástico vermelho.
Indeciso com o argumento rasgou a folha do dia. Ninguém criaria uma crônica satisfatória sem ter vivido num cinema localizado na praça com palmeiras. Cinema vitoriano adaptado em teatro sendo o único sucesso das noites glaciais. Havia um público cativo que ruidosamente assistia aos filmes de faroeste batendo os pés na hora em que o mocinho cometia as piores injustiças. O cinema naquele município com palmeiras era a única alegria. Um prazer oasiano.
Com o passar do tempo conheceu detalhes sobre a concorrência entre o circo e o cinema. O circo de Turlupin começou a atrair o povo, pelas gargalhadas que arrancava, tanto que ninguém lembrava das películas expostas nos cartazes. Tornou-se necessário criar medida preventiva. Cometeria a crônica com tais argumentos. O cinema vazio acabou por ceder o palco para memoráveis apresentações do espetáculo mambembe. O povo esperava em filas enormes o início do espetáculo, para ocupar as arquibancadas de tábuas flexíveis com o corpo entregue as fantasias de Turlupin. Os acionistas do cinema se renderam apertando a mão do palhaço no mês de chuva torrencial quando a casas costumavam ficar lotar graças a beleza de Sofia e a genialidade de Totó. Todos ficaram sem cinema e sem saudade durante o período de Turlupin. Quando o contrato acabou o circo partiu.
O cronista estava satisfeito.
Tempos depois o cinema apagou suas luzes e tampouco havia circo. O cinema apagado cedera lugar as locadoras que foram apontadas como responsáveis pelo esvaziamento dos sonhos coletivos. Todas as tentativas de levar público ao teatro fracassaram sem Turlupin. Quem sairia de casa no denso frio polar para assistir a seminus na tragédia grega? ... que falta faz um palhaço na vida dos homens. Turlupin havia atingido o ponto alto da natureza memorável.